segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A ORIGEM DO HOMEM E DA HUMANIDADE - V (ÚLTIMA PARTE)

Crânio e arcada dentária do Homo sapiens


Prof. Lic. Eduardo Melander Filho


O último representante da linhagem européia recente do gênero Homo foi o Homo neandethalensis, iniciador do modo técnico III de lascamento (técnica Levallois da cultura Musteriense), surgido há 300.000 anos atrás e desaparecendo há 30.000 anos, após 10.000 anos de convívio com o invasor Homo sapiens da cultura Aurignense (modo técnico IV de lascamento), advindo do continente africano (linhagem africana do gênero Homo).
Os Neanderthais eram diferentes dos Sapiens modernos (chamados de Cro-magnon) que invadiram a Europa. Possuíam cérebro maior, toro supra orbital (acima das pestanas) desenvolvido, com arcos semicirculares que se fundiam, testa mais plana que a nossa, calvário comprido (occipital projetado para trás), grande abertura nasal, rosto com aparência pontuda, ossos dos dedos robustos, ante braço curto, grande caixa toráxica, grandes quadris, estatura menor, troncos largos e uma musculatura muito mais desenvolvida. O Sapiens não era páreo para ele numa luta mão a mão. A principal alimentação era a carne de animais mortos, tanto as que eles caçavam quanto as carniças que encontravam com o derretimento do gelo. Usavam também uma técnica de caça diferente. Enquanto o Cro-magnon caçava à distância utilizando dardos e flechas, o Neanderthal enfrentava o animal com uma lança e corpo a corpo.
Uma das perguntas mais freqüentes é sobre se o Neanderthal se miscigenou com o Sapiens, sobrevivendo assim de uma forma ou de outra. Existem duas teorias científicas que tentam dar explicações a essas indagações.
A primeira (a que adotamos) é a que se baseia na origem africana do homem moderno (irradiação africana), segundo a qual o Homo sapiens apareceu na África por volta de 120.000 anos atrás e o Neanderthal na Europa há 300.000 anos atrás, origens e espécies, portanto, distintas e separadas amplamente na temporalidade. O ancestral comum recuaria a milhares de anos, talvez milhões, no tempo. Por essa hipótese, o Homo sapiens substituiu na Europa o Homo neanderthalis há 30.000 atrás, que desapareceu sem haver se miscigenado com o homem moderno.
A segunda teoria, chamada de visão multirregionalista, percebe a transformação evolutiva como uma mudança contínua dentro de uma linhagem geneticamente coesa. Assim, não haveria um rompimento, por exemplo, entre o Homo erectus e o Homo sapiens, pois eles formariam um contínuo evolutivo. Em conseqüência, existiria apenas uma espécie: o Homo sapiens e várias subespécies que se misturariam no decorrer do tempo, dentre as quais o Homo sapiens neanderthalensis e o Homo sapiens sapiens.
Sobre a questão de o Homo neanderthalensis ser considerado também um ser humano completo na acepção da palavra (linguagem simbólica, rituais de enterramentos), trataremos desse assunto num futuro próximo.
Encerramos aqui a série de escritos sobre a trajetória da humanidade dos primórdios até o final do Paleolítico. Agradecemos aos leitores deste jornal, que nos têm prestigiado na leitura de nossos artigos e na crítica que nos ajuda a enriquecer intelectualmente. A todos, nossos mais sinceros votos de um Feliz Natal e um Ano Novo de Prosperidade. Até 2009.


FONTES:


MELANDER FILHO, Eduardo. A Origem do Homem e da Humanidade – V (Última Parte). Gazeta de Interlagos, São Paulo, 18 dez 2008 a 15 jan 2009. História, p. 2.

MELANDER FILHO, Eduardo. A Origem do Homem e da Humanidade – V (Última Parte). Gazeta de Interlagos, São Paulo, 18 dez 2008 a 15 jan 2009. P. 2. Disponível em: <http://www.gazetadeinterlagos.com.br/colunadoleitor.html#2>. Acesso em: 22 dez 2008.

sábado, 13 de dezembro de 2008

A ORIGEM DO HOMEM E DA HUMANIDADE - IV

Homo antecessor

Homo heldebergenses

Homo neanderthalensis



Prof. Lic. Eduardo Melander Filho



O Homo erectus, conforme estávamos comentando no artigo anterior, foi achado na China junto a líticos (instrumentos fabricados de pedra) de 2 milhões de anos atrás. Em Dmanisi, na Geórgia (Cáucaso), foi encontrada uma mandíbula datada de 1,5 a 1,2 milhão de anos atrás. Os fósseis achados fora da África indicam que o Homo erectus não usava do modo técnico II para fabricar instrumentos (mais avançado que o modo I), talvez por ter saído da África antes de que a técnica fosse inventada.
Alguns fósseis de Homo erectus foram achados no sítio de Swartkrans na África do Sul e originalmente classificados como Telanthropus capensis. Dois crânios e uma face encontrados em Sagiran, na ilha de Java, também foram classificados de início como Meganthropus.
Há 1,8 milhão de anos atrás começou a época Pleistocênica (período geológico Quaternário), com o fim do Pliosceno (Terciário). O Homo erectus foi o espécime que viveu em uma época e em outra, sobrevivendo a uma mudança radical ecológica e climática que havia acontecido (o Pleistoceno também é chamado de Idade do Gelo).
Duas linhagens mais modernas e distintas originadas do Homo erectus (ou ergaster) surgem então: a Européia e a Africana. Comentaremos, nesse artigo, sobre a Européia.
No final do Pleistoceno inferior (1,8 milhão a 780 mil anos atrás), surgiu na Europa o Homo antecessor, de aproximadamente 1.000 cc. de crânio. Usava o modo técnico I na fabricação de líticos, da mesma maneira que no oriente e fora da África pelo Homo erectus. Foram encontradas fortes evidências indicando que esse grupo colonizador praticava o canibalismo.
Na época do Pleistoceno Médio (780 mil e 127 mil anos atrás), viveu o Homo heidelbergensis, há 500 mil anos atrás, uma evolução da espécie anterior. Foram encontrados líticos bifaces da indústria Acheulense do modo técnico II, que só haviam sido encontrados na África até então. Eram também caçadores. Em Schoningen (Alemanha) foi encontrado 1 metro de lança de madeira encravado num fóssil de cavalo, datado de 400 mil anos atrás. Na verdade eram quatro lanças de 1,82 m., 2,25 m., 2,30 m., além da anterior fragmentada em 4 partes. Foram feitas de tronco de Pícea, uma árvore conífera. Pesavam por volta de 2 kg. Não se sabe se foram fabricadas para serem arremessadas ou para serem usadas em confronto corpo-a-corpo, o que parece ser a opção mais provável. Nos povoados de Torralba Del Moral e Ambrona (Espanha), foram encontrados restos de elefantes fósseis associados à bifaces (instrumentos de pedra lascados em ambas as faces), sugerindo uma caçada indiscriminada de 47 elefantes.
O representante mais evoluído dessa linhagem Européia surgiu há 300 mil anos atrás e viveu nos finais do Pleistoceno médio e grande parte do Pleistoceno Superior (127.000 e 10.000 anos atrás), dando início à cultura lítica Musteriense ou modo técnico III de lascamento, uma forma até então inusitada. Era o Homo neanderthalensis, que alguns antropólogos físicos consideram uma subespécie do Homo sapiens (nós mesmos). Escreveremos mais sobre ele no próximo artigo.


FONTES

MELANDER FILHO,Eduardo. A Origem do Homem e da Humanidade IV. Gazeta de Interlagos, São Paulo, 12 dez 2008 a 17 dez 2008. História, p. 2.

MELANDER FILHO, Eduardo. A Origem do Homem e da Humanidade IV. Gazeta de Interlagos, São Paulo, 12 dez 2008 a 17 dez 2008. P. 2. Disponível em:
http://www.gazetadeinterlagos.com.br/colunadoleitor.html#2. Acesso em: 12 dez 2008.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

A ORIGEM DO HOMEM E DA HUMANIDADE - III

Homo rudolfensis

Homo ergaster

Homo erectus




Professor Lic. Eduardo Melander Filho


Nas edições passadas escrevemos sobre a epopéia evolutiva do homem, desde os primórdios até o Homo habilis, o primeiro espécime do nosso gênero.
A nova espécie teve um aumento no cérebro, possivelmente para ter capacidade de trabalhar com uma cartografia mais ampla dos espaços abertos das savanas e perceber detalhes que não existem numa floresta fechada, como o vôo das aves e o movimento de carniceiros. O Homo habilis foi a primeira espécie a produzir instrumentos. Os primeiros líticos (artefatos de pedra) foram encontrados na região de Afar, na Etiópia, datados em 2,5 milhões de anos atrás. Essas lascas foram produzidas de uma forma que é classificada como modo técnico I ou Olduvaiense. São instrumentos biológicos, ou seja, estendiam a morfologia do indivíduo. Provavelmente eles produziam os líticos a partir de necessidades imediatas e não por um planejamento prolongado, resultado do mantenimento por longo tempo da idéia de fabricar um instrumento. Procurava-se um atributo nos artefatos e não uma forma permanente.
Bernard Wood, que foi o descobridor do Homo habilis, descobriu também outro espécime a que deu o nome de Homo rudolfenses, muito embora hoje se aceite que esta última é apenas uma variante da primeira.
O Homo rudolfenses difere da anterior por possuir uma face mais achatada e larga, molares e pré-molares mais alargados com coroas e raízes mais complexas, possuindo também um crânio maior.
Surgiu então uma outra espécie mais avançada sob ponto de vista evolutivo: o Homo ergaster, que chegou a conviver com o Homo habilis em algumas regiões. Encontrado no lago Turkana, no Quênia, apresentou datação de 2 a 1 milhão de anos atrás. O corpo mudou em relação aos anteriores, apresentando proporções semelhantes a nossa. Seu crânio foi medido em 800 ou 900cc. Surgiu com o Homo ergaster uma nova indústria lítica, o modo técnico II ou Acheulense. Os artefatos produzidos apresentavam formas pré-determinadas, indicando que a intenção de fabricá-los existia antes na mente do autor. No entanto, os primeiros fósseis do Homo ergaster foram encontrados juntamente a artefatos produzidos pelo modo técnico I, indicando que o modo técnico II, tratou-se de inovação cultural. Eram comedores de carne ou carniça, prática que os Homo habilis já haviam começado. Foram os primeiros a sair da África e povoar a Ásia e a Europa, através de migração em escala.
Eugene Dubois encontrou em Trinil, na ilha de Java, uma abobada craniana, juntamente com um molar e um fêmur, batizando inicialmente o espécime de Pithecanthropus erectus, posteriormente classificado como Homo erectus. Possuía uma medida craniana de 813 a 1050 cc. A maioria dos antropólogos considera o Homo erectus, apesar de ser mais robusto, da mesma espécie que o Homo ergaster. Foi datado de 1,8 milhão de anos atrás.
Continuaremos no próximo número.


FONTES:

MELANDER FILHO, Eduardo. A Origem do Homem e da Humanidade – III. Gazeta de Interlagos, São Paulo, 28 nov 2008 a 04 dez 2008. História, p. 2.

MELANDER FILHO, Eduardo. A Origem do Homem e da Humanidade – III. Gazeta de Interlagos, São Paulo, 28 nov 2008 a 04 dez 2008. P. 2. Disponível em: <
http://www.gazetadeinterlagos.com.br/colunadoleitor.html#2>. Acesso em: 01 dez 2008.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A ORIGEM DO HOMEM E DA HUMANIDADE - II

Australopithecus Afarensis

Australopithecus Anamensis


Australopithecus Africanus


Fóssil de Lucy (Australopithecus)



Australopithecus



Paranthropus Bolsei





Homo Hábilis



Prof. Lic. Eduardo Melander Filho


Na edição passada comentamos sobre a trajetória evolutiva dos antepassados do homem moderno, desde o gênero Aegyptopithecus ao gênero Ardipithecus, espécie ramidus. O último gênero que surgiu antes do gênero Homo (que nossa espécie faz parte) foi o Australopithecus de diversas espécies.
O Australopithecus anamensis, encontrado no Quênia e datado em 4,17 e 4,07 milhões de anos atrás, apresenta molares maiores e dentes com desgastes nas coroas centrais, provavelmente por consumir vegetais que exigiam prolongada mastigação.
O Australopithecus afarensis, com datação entre 4 e 2,9 milhões atrás, foi encontrado na Tanzânia e Etiópia por Donald Johanson. Tinha alimentação vegetariana e postura ereta. Era um pouco maior do que os chipanzés. O famoso fóssil de Lucy pertence a essa espécie, que estava adaptada mais no andar ereto do que no quadrupedalismo (andar em quatro patas). A caixa craniana mede 500 cc.
O Australopithecus africanus foi datado de 3 a 2,5 milhões e encontrado na África do Sul, nas cavernas de Taung, Sterkfortein e Makapansget. Eram similares aos afarensis, com tamanho de cérebro igual. No entanto, apresentam molares maiores, próprios para vegetais que requerem uma mastigação mais prolongada.
Surgiram dois gêneros então, originários do Australopithecus afarensis e/ou ananensis: O Paranthropus e o Homo.
Os Paranthropus eram muito parecidos corporalmente com os Australopithecus, a ponto de muitos o identificarem naquele gênero. No entanto seu aparelho mastigador parece ter se especializado para processar vegetais duros e abrasivos (gramas e folhas) em resposta às mudanças climáticas que ocorreram há 2,6 milhões atrás (surgimento das savanas) e que também propiciaram o surgimento do próprio gênero Homo. Parece que enquanto os Homo se especializaram cada vez mais em comer carne (por isso sobreviveram e evoluíram), os Paranthropus se especializaram em gramíneas dos espaços abertos, caindo num beco evolutivo sem saída (desapareceram sem deixarem descendentes). O Paranthropus aethiopicus foi datado em 2,6 milhões atrás. O Paranthropus boisei foi encontrado no leste da África e o Paranthropus robustos no sul da África.
O Homo habilis foi a primeira espécie do gênero Homo. Foi encontrado na Etiópia, Quênia e Tanzânia e datado em 2,3 a 1,5 milhões atrás. Evoluiu de uma espécie próxima ao Australopithecus africanus, segundo o arqueólogo Juan Luis Arsuaga (provavelmente do Australopithecus garhi de 2,5 milhões de anos atrás). Na verdade, não era muito diferente dos Australopithecus. Apresenta um crânio de 600 cc., mas há crânios maiores e menores. Richard Leakey achou um crânio de 752 cc.. O Homo habilis possui uma cara menor que o Australopithecus e grandes molares. Habitou paisagens abertas, como as savanas atuais que surgiram naquela época.
Continuaremos no próximo número.


FONTES:

MELANDER FILHO, Eduardo. A Origem do Homem e da Humanidade – II. Gazeta de Interlagos, São Paulo, 14 nov 2008 a 27 nov 2008. História, p. 2.

MELANDER FILHO, Eduardo. A Origem do Homem e da Humanidade – II. Gazeta de Interlagos, São Paulo, 14 nov 2008 a 27 nov 2008. Disponível em: <
http://www.gazetadeinterlagos.com.br/colunadoleitor.html#2>. Acesso em 17 nov 2008.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

HAROLD WALTER: UM INGLÊS DO SÉCULO XIX NA LAGOA SANTA DO XX (PARTE 1)

O Homem de Lagoa Santa


Harold Walter: Um inglês do século XIX na Lagoa Santa do XX (Parte 1)


Eduardo Melander Filho [1] / Rodrigo Medina Zagni [2]



Introdução

A biografia de Harold Walter se confunde, sob vários aspectos, com a própria história da Arqueologia Brasileira especialmente no histórico de um de seus mais importantes e significativos sítios: Lagoa Santa, no Estado de Minas Gerais, local onde mais resultados obteve o arqueólogo membro da Academia de Ciências e do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Vice-Cônsul da Inglaterra em Belo Horizonte.
Nosso objetivo consiste em demonstrar, por meio das pesquisas, o empreendimento de Harold Walter, os resultados obtidos, as mudanças pelas quais passava a arqueologia não só no contexto brasileiro, mas primordialmente europeu no campo teórico e metodológico diante das significativas descobertas e inovações tecnológicas que redefiniram a própria ciência arqueológica.
Essas mudanças são perceptíveis nos métodos de pesquisa Harold Walter de forma sintomática. O arqueólogo inglês demonstrou em vários momentos resistências significativas às novidades, arraigado em suas convicções e concepções teóricas fortemente ligadas ao evolucionismo darwinista, o que se pode verificar na comunicação dos resultados de suas escavações transcritas no tratado “Arqueologia da Região de Lagoa Santa, Minas Gerais (Índios pré-colombianos dos abrigos-rochedos)”, escrito pelo arqueólogo em 1958 e que constitui nossa fonte de estudo[3].
Segundo o próprio autor trata-se de

. . . um relatório baseado nas explorações feitas durante muitos anos e inclui uma descrição dos exemplares mais importantes, que serão de bastante utilidade, no futuro, para estudos comparativos e cronológicos.[4]

Procuraremos, na descrição de sua metodologia para pesquisa de campo e no exercício interpretativo dos artefatos que escavou, identificar as mudanças pelas quais passava a arqueologia no âmbito teórico-metodológico. Verificaremos ainda, como essas mudanças se relacionaram com as concepções, como dissemos, vigentes desde o final do século XIX na Europa, onde se deu o período de formação de Walter e que aparecem desde as fases de escavação até a análise final dos objetos escavados em campo.
Entender Harold Walter e seu papel em um contexto mais amplo é, portanto, entender um período chave na conformação de uma Arqueologia Brasileira.

Dos primórdios de uma arqueologia brasileira à Peter Lund:

Harold Walter é herdeiro direto da tradição européia em arqueologia que foi empreendida no Novo Mundo, desde os seus primórdios com a publicação das primeiras obras que faziam alusão às casas subterrâneas dos Guaianases, por Gabriel Soares de Souza, machados semilunares dos Tapuias estudados por Yves d’ Evreux e propulsores reproduzidos nas pinturas de Albert Eckout.
O interesse de uma arqueologia européia pelo Brasil se deu, inicialmente, em função da atividade de coleta de objetos exóticos para os gabinetes reais de curiosidades. Nesse contexto, o século XIX é fundamental para a conformação de uma atividade arqueológica no Brasil com a vinda da corte portuguesa, o que transformava a necessidade de conhecer as terras brasileiras em uma política oficial de Estado.
No mesmo período foram patrocinadas expedições de naturalistas europeus como Agostín de Saint-Hilaire, Martius, Spix e de Peter Lund. Do trabalho deste último, em Lagoa Santa, Harold Walter seria um fiel continuador[5].
O dinamarquês visitou Lagoa Santa pela primeira vez em 1834, retornando e fixando-se ali definitivamente em 1835, com suas pesquisas subvencionadas pela Sociedade de Ciências de Copenhague. Admitido no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no ano de 1839, doou à instituição um livro de Rafn sobre a descoberta da América do Norte pelos Vikings no século X, propondo que se verificasse uma suposta presença escandinava no Brasil do passado por meio de estudos dos vestígios mortais deixados por seus homens primitivos.[6]
Lund, em 21 de abril de 1843, descobriu 30 ossadas humanas misturadas a fósseis de animais, fato que definiria o seu destino futuro enquanto pesquisador. Suas descobertas apontavam para a evolução das espécies, no entanto, como luterano convicto, adotou a teoria do Catastrofismo - a soma do Criacionismo com o Atualismo Geológico -, afirmando que as diferenças entre fósseis de diversas camadas estratigráficas eram prova de sucessivas “criações”[7].
Lund era também fixista, pois não via ligação entre os fósseis e as espécies atuais, além de acreditar profundamente no homem pré-diluviano. Quando descobriu ossadas de seres humanos iguais a nós juntamente com fósseis de animais extintos em uma mesma camada estratigráfica, indicando que ambos viveram em uma mesma época, não pôde levar a termo o produto de seus achados. Entre a fé e as evidências, Lund optou por sua fé[8].
O cientista morreu em 25 de maio de 1880 depois de ter explorado mais de 800 cavernas e coletando por volta de 12 mil fósseis, escrevendo assim, a história do Pleistoceno brasileiro.
Lund identificou cerca de 115 mamíferos, incluindo cavalos, dentes de sabre, cachorros das cavernas, capivaras, tatus gigantes e duas espécies de preguiças terrícolas, as quais foram confirmadas como espécies um século e meio depois. Descobriu, ainda em Lagoa Santa, cerca de 70 ossadas humanas que estão hoje, em sua maioria, junto da maior parte das outras coleções, em Copenhague, em virtude de a Monarquia Dinamarquesa ter provido o financiamento de grande parte das pesquisas.
Foram realizados estudos dessas coleções nos Séculos XIX e XX por Herluf Winge, paleontólogo de Copenhague.
Lund é considerado o pai da Paleontologia brasileira e reconhecido como pai da Arqueologia e da Espeleologia. Foi também um dos primeiros a assinalar a presença de sambaquis e inscrições rupestres no Brasil[9].
Segundo Madu Gaspar, as pesquisas de Lund coincidiram com a efervescência dos debates sobre a antiguidade do Homem na Europa e acabaram por transportar a querela para o Brasil, impondo à arqueologia que aqui se fazia, a questão da antiguidade da própria ocupação das Américas. Lagoa Santa, nesse sentido, foi um ponto de referência pela comprovada coexistência de seus antigos habitantes e a fauna extinta.[10]
O início da arqueologia brasileira - segundo a Profa. Dra. Marisa Coutinho datado na segunda metade do século XIX[11] -, onde se insere Peter Lund e suas pesquisas em Lagoa Santa, é marcado inicialmente pelo interesse de D. Pedro II pela Antropologia. Esse interesse foi determinante para a ampliação do acervo do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro com a vinda de coleções européias e africanas, contendo itens de algumas das primeiras escavações de sítios pré-históricos do mundo.
Após um período intermediário que assistiu à primeira publicação de um manual de arqueologia brasileira por Angione Costas, em 1934, iniciou-se um período formativo no âmbito da pesquisa moderna, que se estendeu de 1950 a 1965[12] e teve nos chamados arqueólogos “amadores” seus primeiros colaboradores.
Dentre os “amadores” estavam: Guilherme Tiburtius, imigrante alemão cujo acervo formou a Coleção do Museu Arqueológico de Sambaquia em Joinville; Padre Rambo, no Rio Grande do Sul; J. A. Pereira Júnior e, finalmente, Harold Walter, cônsul inglês em Belo Horizonte, que deu continuidade às escavações de Lund em Lagoa Santa.

Os sítios de Lagoa Santa:

O sítio arqueológico da Lapa Vermelha IV (Lagoa Santa/ MG) foi palco de importantíssimos achados, como carvões vegetais que foram associados a níveis estratigráficos, onde ossos e coprólitos de uma preguiça gigante foram escavados e datados em 9.580 AP.
Além de importantíssimo sítio paleontológico, as escavações em Lagoa Santa possibilitaram importantes estudos feitos a partir de crânios humanos, que sugerem as primeiras populações na América como portadoras de características negróides ou australóides e não mongolóides conforme previa o modelo tradicional[13], segundo o Prof. Dr. Walter Alves Neves[14].
O mais importante achado no sítio da Lapa Vermelha IV foi o chamado crânio de Luzia, descoberto pela Missão Franco Brasileira em 1975, comandada por Annette Laming Emperaire, juntamente com André Prous.
O sítio abrange toda uma cadeia de cavernas de calcário que se estende desde os limites do município de Lagoa Santa até às cidades vizinhas de Pedro Leopoldo, Matosinhos e Sete Lagoas.
Os antigos acampamentos humanos, identificados e escavados, compreendiam os sítios de Campo Alegre, Carancas (Nova Granja), Lapa Vermelha (Pedro Leopoldo) e Lapa do Galinheiro (Confins).
Os sítios de Lagoa Santa foram pesquisados também por Wesley Hurt e o casal Clifford Evans e Betty Meggers. Segundo nos informa Cristina Barreto, tratavam-se dos “. . . arqueólogos americanos mais influentes no Brasil . . .”[15]
Com Hurt trabalharam ainda, em Lagoa Santa, os arqueólogos brasileiros Castro Faria, do Museu Nacional e Oldemar Blasi, do Museu Paraense, e desse trabalho tem-se as primeiras datações radiocarbônicas de Lagoa Santa, que atestam antiguidade de 10.000 AP.


Harold Walter e seu tempo:

Até pelo menos 1940 a Arqueologia era tida como uma atividade de “caça a tesouros”, financiada por museus que exibiam seus resultados. É, portanto, fruto da curiosidade humana por suas ações e resultados, que se estabelece paralelamente a um orgulho em exibir objetos desconhecidos, únicos, o que sempre exerceu fascínio no Homem.
Somente a partir da década de 1960 a Arqueologia passou a operar com função de “espelho e reflexo” do ser humano: a caça aos tesouros teve como finalidade fazer com que os objetos encontrados demonstrassem reflexivamente a sociedade que os produziu. Havia ainda grupos mais avançados, desenhando em claras linhas uma etnologia que se afirmaria carreada pela antropologia, pressupondo objetos não reflexivos mas demonstrativos de como a sociedade que os produziu era simbolizada, criando assim uma arqueologia simbólica.
A década de 1960 foi também palco da revolucionária New Archaeology, a qual rompeu com os paradigmas tradicionais que ameaçavam a arqueologia de consolidar-se como uma ciência meramente catalográfrica.
Para Madu Gaspar,

. . . as pesquisas da arqueologia consideradas modernas começaram na década de 50, quando foram obtidas as primeiras datações radiocarbônicas e feitas as primeiras análises sistemáticas de sítios.[16]

Assistindo às mudanças desses paradigmas e à uma revolução nas técnicas, onde se inseria Harold Walter?
Ele é fruto da antiga corrente que via na atividade arqueológica ainda a aventura da caça aos tesouros antigos e nas escavações a busca pelas verdades ocultas que desvendariam a saga humana na Terra, descortinando o modus vivendi de nossos antepassados.
A própria biografia de Walter demonstra que a Arqueologia passava a ser uma “aventura para intelectuais”, uma espécie de continuidade das muitas de suas peripécias juvenis, como quando fugiu da Inglaterra para se alistar ao exército Belga para lutar a Primeira Guerra Mundial, uma vez que em seu país natal não tinha idade suficiente para servir ao exército real. Da aventura, seu neto Alexander Walter nos diz ter guardado o capacete que o avô usou em combate, com a marca de um tiro que o alvejou de raspão e por pouco não lhe tirou a vida. Guarda ainda uma baioneta alemã, lembrando que o avô contava tê-la tomado de um inimigo após vencê-lo em um combate corpo a corpo, travado até à morte.
Na guerra, já como sargento, Walter foi condecorado. Para ser operado de uma hérnia teve que se ausentar do combate, e ao receber alta, podendo voltar ao front, recebeu a notícia de que sua companhia inteira havia sido aniquilada.
As aventuras vividas em sua juventude tinham um significado para ele, parecido com a aventura da pesquisa de campo.
Trata-se da mesma qualidade de atividades que inspirou George Lucas a criar, a partir do vittae do arqueólogo Heinrich Schliemann (1822-1890), o personagem Indiana Jones[17].
Harold Victor Walter nasceu em 23 de julho de 1897 em Liverpool, na Inglaterra.
É filho de mãe pernambucana, Catherine Lockhart Walter, e do inglês Francis Catham Walter, que se mudou para o Brasil em 1887 para trabalhar no Banco Anglo-Brasileiro de Londres, primeiro no Rio de Janeiro, depois em Pernambuco, onde conheceu Catherine.
O jovem Walter chegou ao Brasil no dia 16 de março de 1921, vindo de Liverpool no vapor “Orcoma” e trazendo consigo um contrato para trabalhar em uma firma britânica. A partir de 1926 mudou-se para o Estado de Minas Gerais, seguindo os pais.
O “Cidadão Mineiro Honorável”, título que lhe fora conferido pelo Estado de Minas Gerais, casou-se com Doris Annie Pryor no dia 21 de abril de 1926 e tiveram dois filhos, Cyril Guy Pryor Walter e Derek Walter.
Entrou para o consulado inglês como Vice-Cônsul em 1942, com a Segunda Guerra Mundial em pleno curso.
De 1956 até 1975 foi diretor da “Cultura Inglesa” de Belo Horizonte, atividade que integrou às suas pesquisas, fazendo do espaço o local para a comunicação dos resultados de suas escavações.
Foi condecorado pelo presidente Emílio G. Médici com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, no grau de Oficial, em 28 de abril de 1971, a mais alta condecoração do governo brasileiro já dada a estrangeiros.
Em campo, geralmente, era acompanhado pelos amigos Arnaldo Cthoud e Aníbal Mattos, liderando escavações durante a maior parte de sua vida dedicadas ao estudo da pré-história regional e, a exemplo de Lund, inclinando-se mais às explorações paleontológicas.
Sobre a arqueologia afirmava tratar-se de atividade que empreendia em intervalos irregulares; pensamos que, em decorrência de seus próprios estudos em paleontologia, para esclarecer as relações entre restos de ossos humanos relacionados às evidências de espécimes extintas, como uma espécie de continuação da atividade paleontológica ou, em suas próprias palavras, um “hobby”.

Meu esporte favorito foi o tênis, que pratiquei com regularidade por mais de 30 anos, e meu “hobby” tem sido fazer pesquisa de campo e estudar a pré-história da região de Lagoa Santa . . .[18]

Seu neto, Alexander Walter, se recorda do avô como um arqueólogo nato:

Fui com ele quando era criança em vários lugares como Cerca Grande e outras grutas da região. Vi muitos desenhos arqueológicos nas paredes das cavernas.
Ele era uma pessoa super bem-humorada e era famoso por contar piadas que tinha guardadas num caderninho.
[19]

O estudo sobre os índios pré-colombianos dos abrigos-rochedos:

O objetivo que norteou a maior parte dos estudos e escavações de Walter em Lagoa Santa foi comprovar a contemporaneidade do homem primitivo, que ali habitou, com a fauna extinta do período pleistoceno. Por outro lado, seu interesse inicial pelo sítio foi de origem paleontológica, no qual os abrigos forneceram-lhe uma diversidade enorme de materiais.
O interesse científico pela Antropologia seria despertado em seguida.
Estudou vários abrigos-rochedos de Lagoa Santa, áreas protegidas e cobertas por rochas calcáreas[20] escolhidas pelos índios primitivos como habitação, depósito e cemitério. Parte relevante de suas conclusões foram formuladas a partir de exercícios de associação dos líticos aos restos ósseos humanos ali escavados, tentando chegar a uma espécie de apropriação de uso social dado aos objetos de pedra lascada e algumas vezes polida, para determinar como viviam os índios de Lagoa Santa nos tempos que designava como “pré-históricos”.
A designação demonstra que fazia uso, no Brasil, de cronologias européias.
Estudou sistematicamente 7 abrigos de tipos diversos: Eucalipto, Mãe Rosa, Limeira, Sumidouro, Samambaia, Marciano e caverna de Confins; de onde coletou artefatos a partir dos quais estabeleceu, em conjunto com o estudo de pinturas rupestres, uma cronologia de seqüência cultural do homem primitivo de Lagoa Santa.
As associações feitas entre restos esqueletais e ossadas de animais extintos, possibilitou a Walter, estabelecer uma cronologia onde afirmou que

Os habitantes mais antigos [de Lagoa Santa] são, de fato, os de Confins, Pedro Leopoldo e da Lapa do Sumidouro, pois que a sua associação com os mamíferos extintos não deixa dúvida alguma sobre a sua antigüidade.[21]

Os artefatos escavados:

Outra importante contribuição legada pelo arqueólogo foi a tipologia construída para pontas fabricadas com material ósseo. Identificou quatro tipos principais que divergiam e se agrupavam a partir de suas formas e comprimentos, de acordo com os locais onde foram escavados: tipos de Mãe Rosa; Eucalipto; Sumidouro; e Confins.

Os novos métodos de datação:

Por um lado, Walter estabeleceu suas primeiras cronologias baseando-se nos estudos estratigráficos dos sítios, a partir do arranjo natural das camadas de solo, nas quais sedimentos e outros materiais foram depositados, relacionando objetos líticos, restos cerâmicos, artefatos de osso, restos esqueletais de homens e ossadas de animais (muitos deles extintos) aos perfis em que eram escavados.
Por outro lado, Walter é contemporâneo ao desenvolvimento do método que data matéria orgânica pela mensuração da desintegração do carbono radioativo, o C14, que começava a ser inserido na análise de artefatos arqueológicos com o método corrente já consolidado da estratigrafia e da medição do flúor.
Isso aparece na fonte por nós estudada, onde apontou os benefícios da datação com relativa precisão e as dificuldades em ter acesso a esse tipo de tecnologia:

Disso temos certeza [de que o homem de Lagoa Santa ali viveu há milênios] devido ao teste de data, por meio de carbono radioativo, feito com carvão vegetal encontrado juntamente com o homem de Pedro Leopoldo, e aos testes de flúor no Crânio de Confins.[22]

Como vemos, chegou a fazer uso da técnica do C14, por meio da qual determinou a idade do Homem de Pedro Leopoldo, datando o carvão vegetal colhido em Lagoa Funda, obtendo o resultado de 3000 AP.
Mas ainda assim, para Walter, os novos testes eram

. . . muito dispendiosos e as amostras de material têm de ser enviadas à América do Norte para análise, limitando, assim, os meios pelos quais se poderia provar, sem dúvida alguma, a sua antigüidade.[23]

Concepções teóricas

Fica claro que Walter operava com um modelo monolítico de explicação para a ocupação das Américas. Quando mencionou que

não sabemos quantos milhares de anos ele [o homem primitivo de Lagoa Santa] levou na grande migração da Sibéria através do Estreito de Behring até ao Alasca e depois em direção ao sul chegando então ao Istmo do Panamá e, finalmente, à América do Sul.[24]

Estava se referindo, apesar da diversidade de sistemas adaptativos, ao modelo até recentemente mais aceito para a colonização das Américas: o big game hunters.
O modelo Clovis First concebe levas de migrações humanas cruzando a Beríngia antes do fim da última glaciação na era Whürm, há cerca de 14.000 AP, em um período de recuo das geleiras, quando estaria aberto o ice free corridor na América do Norte. O fenômeno que ocorreria entre intervalos de tempo, durante os mais ou menos 100 mil anos nos quais durou a glaciação, e ao final da qual o planeta sofreu uma brusca elevação de temperatura, responsável pelo derretimento de geleiras gigantescas e pela subida do nível do oceano, cobrindo então a região que ligava a Sibéria à América do Norte.
Dessa forma Walter afirmava sem dar fundamentação teórica ou referências, que a grande migração teria ocorrido há 25.000 AP[25], enquanto Anna Roosevelt nos informa que os sítios de matança da cultura Clóvis foram datados com C14 em 11.200 AP e 10.900 AP; e a Folson, ainda na América do norte, nos dá datações entre 10.900 AP e 10.200 AP[26]. Apesar disso, a mesma autora afirma que na América do Sul e Central não há registro de sítios que confirmem a teoria da migração Clóvis[27].
Segundo Anna Roosevelt, a teoria da migração Clóvis era consenso até meados do século XX, com o povoamento das Américas sendo estipulado em torno de 12.000 AP, quando povos oriundos da Ásia, seguindo animais de grande porte teriam atravessado a Beríngia, assentando-se nos planaltos norte-americanos em 11.500 AP, chegando aos Andes em 10.500 AP e colonizando completamente a América do Sul em 10.000 AP.[28]



Evolucionismo, ciclo civilização & barbárie e o “fardo do homem branco”

A noção de “raça”, posteriormente descartada como categoria científica, foi plenamente incorporada pela arqueologia e pela antropologia física brasileiras. Foram os estudos sobre ”raça” que resultaram na criação da categoria “Homem de Lagoa Santa” . . .[29]

As conclusões de Harold Walter, a partir de seus achados em escavações feitas nos sítios de Lagoa Santa, denunciam uma parte significativa do imaginário europeu ainda reverberando o abalo sísmico das publicações de Darwin e Wallace, ambas de 1848, em relação ao homem “primitivo” que habitou o território americano em um período anterior à chegada dos europeus modernos.
A própria designação do período como “pré-histórico” e a operação, portanto, com uma cronologia que tinha como balizas temporais o paleolítico, mesolítico e neolítico - mesmo como determinantes de estágios culturais, mas ainda assim, alinhados com a cronologia européia -, denuncia a importação de um modelo evolutivo desenhado a partir daquela realidade e a carência, ainda assistida hoje, pela elaboração de cronologias com base nas realidades culturais localizadas e de necessidades distintas.
Nesse caso, Walter operava pela taxonomia proposta por Worsae e Thomsen, em 1836, para a organização de peças arqueológicas em museus, agrupadas em três idades arqueológicas: pedra lascada, pedra polida e dos metais. Para o professor Ulpiano Bezerra de Menezes trata-se de

. . . simplesmente um esquema evolucionista que parte de referencial morfológico e funcional e de índices de complexidade tecnológica para justificar seqüências e estágios.[30]

Walter afirmou que os homens primitivos que fizeram a travessia da Beríngia (que determinava ter ocorrido há 25 mil anos) estariam em um estágio cultural paleolítico, pois sua cultura lítica demonstrava lascamentos rudimentares. Por sua vez, o homem primitivo de Lagoa Santa para ele teria chegado à Idade Mesolítica em virtude da

. . . ausência de cerâmica, os numerosos artefatos de pedra lascada e outros tendo apenas a ponta afiada e polida, [ que] sugerem uma etapa intermediária entre a Idade paleolítica (pedra lascada) e a Neolítica (pedra polida).[31]

Walter distinguiu o homem primitivo de Lagoa Santa de um indivíduo “progressivo e culto”[32], referindo-se por sua vez aos povos andinos e meso-americanos como “civilizados” e pressupondo com isso que a evolução seria desenhada por um processo linear e etapista, que levaria povos incultos inevitavelmente ao progresso. A idéia de progresso aparece nas similaridades, sabidamente frágeis, construídas entre as civilizações meso-americanas e andinas, e as civilizações egípcia e mesopotâmica. Com o estabelecimento de elos de ligação com a antigüidade clássica, na medida da relativa homogeneização cultural das civilizações do Crescente Fértil sob o helenismo e depois sob Roma, aí então estaria traçada a conexão entre a antiguidade americana e a base da civilização ocidental e médio-oriental.

Continua na Segunda parte


[1] Bacharel em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
[2] Bacharel em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo; Doutorando em Práticas Políticas e Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo
[3] Utilizamos a edição WALTER, H.V. Arqueologia da Região de Lagoa Santa: Minas Gerais (Índios pré-colombianos dos abrigos-rochedos). Rio de Janeiro: 1958.
[4] WALTER, H.V. Op. cit. p. 3.
[5] Sobre a biografia de Peter Lund, convém citarmos a descrição de AGUIAR, Raquel. Perfis - Peter Lund. Ciência hoje On Line, Agosto/2000, passim. “Peter Wilhelm Lund nasceu em 14 de agosto de 1801 na Dinamarca, aos 17 anos já era Bacharel em Letras, ocasião em que ingressou no curso de Medicina. Condecorado por dois trabalhos realizados em campo em 1824 publicou um livro sobre fisiologia que foi adotado nas Universidades de Copenhague, Viena e Nápoles e escreveu uma monografia de Zoologia, também premiada sobre o sistema de circulação nos crustáceos. Transferiu-se para o Brasil em dezembro do mesmo ano, fugindo do clima de sua terra natal e da tuberculose que matou dois de seus irmãos, fixando-se em Itaipu-RJ, onde se dedicou à montagem de coleções de Zoologia e Botânica remetidas posteriormente ao Museu de História Natural de Copenhague. Em 1829 realizou uma viajem a Hamburgo, ocasião em que exibiu o produto de suas pesquisas na França e Itália. Quando voltou ao Brasil em 1833, dedicou-se à Botânica das plantas domésticas juntamente com L. Ridel, viajando também por São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro e Minas Gerais para estudar a flora e a fauna locais”.
[6] Ibid., passim.
[7] Ibid. passim. Segundo a autora: "Pouco depois da descoberta de Lagoa Santa, Lund abandonaria suas pesquisas. Em carta à família, atribuiu a renúncia a problemas financeiros. Cástor Cartelle propõe outra justificativa: 'Lund ficou um tanto desorientado com a existência do homem pré-diluviano e sincrônico da fauna recente e extinta. Acredito que o fato de comprovar que sua perspectiva catastrófica não tinha sustentação foi uma das causas que o impeliram a abandonar a vida científica’".
[8] AGUIAR, Raquel. op. cit. passim.
[9] Ibid. passim.
[10] Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 8.
[11] A Profa. Dra. Marisa Coutinho adotou a classificação periódica de inicial, intermediário e formativo em relação a história da arqueologia brasileira até 1965, em suas aulas da disciplina “Arqueologia Brasileira”, ministradas no primeiro semestre de 2006 no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.
[12] Idem.
[13] FLEURY, Ana Carolina. Módulo arqueológico terá peças do Museu. Boletim da Universidade Federal de Minas Gerais, Nº 1272, ano 26, 12.04.2000.
[14] Walter Alves Neves defende a tese de que houve três levas migratórias do Homo sapiens a partir da África. A segunda, que ocorreu por volta de 70.000 anos atrás, ocorreu em direção à Austrália com uma ramificação em direção ao norte da Ásia, cujos descendentes teriam atravessado a América há 14.000 anos e possuíam características Australóides. Posteriormente, por volta de 11.000 anos atrás, uma outra leva teria atravessado Bhering oriunda do norte da Ásia, mas já com características Mongolóides, as quais prevalecem hoje nos povos indígenas americanos. Essa posição foi assumida por Neves em sua Conferência de abertura do “I Simpósio e Patrimônio de Minas Gerais” e no “II Simpósio Regional de Arqueologia e Patrimônio da Mata Mineira”, realizados em finais de 2006 em Juiz de Fora, cujos anais ainda não foram publicados.
[15] A construção de um passado pré-colonial: uma breve história da arqueologia no Brasil. Revista USP, 44:32-51. 1999-2000, p. 44.
[16] Op. cit. p. 17.
[17] Quem nos dá essa informação é FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Editora Contexto, 2003, p. 10.
[18] WALTER, H. V. 50 anos de excursões e explorações em Minas Gerais: uma autobiografia de H. V. Walter. Belo Horizonte: Vigília, 1976, p. 13.
[19] A informação nos foi passada por escrito, em resposta às perguntas elaboradas pelos autores.
[20] Que contêm ou são revestidas por carbonato de cálcio.
[21] Op. cit. p. 95.
[22] Ibid. p. 11.
[23] Ibid. p. 106.
[24] Ibid. p. 11.
[25] Ibid. p. 15.
[26] O povoamento das Américas: o panorama brasileiro. In: TENÓRIO, Maria Cristina. Pré-História da Terra Brasilis. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999, p. 36.
[27] Ibid. p. 39.
[28] Ibid. p. 35.
[29] GASPAR, Madu. Op. cit. p. 14.
[30] “Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico” in: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. V. 2, jan./dez. 1994, p. 25.
[31] Op. cit. p. 15.
[32] Ibid. p. 12.

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Este artigo foi publicado pela Revista História e-História em 24/10/2008, que é uma publicação organizada com apoio do NEE-Núcleo de Estudos Estratégicos/Arqueologia da Unicamp. Disponível em: <http://www.historiahistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=120>. Acesso em: 14 nov 2008.

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HAROLD WALTER: UM INGLÊS DO SÉCULO XIX NA LAGOA SANTA DO XX (PARTE 2)

Lagoa Santa


Harold Walter: Um inglês do século XIX na Lagoa Santa do XX (Parte 2)


por Eduardo Melander Filho e Rodrigo Medina Zagni

Continuação da Primeira parte

Não pretendemos, em momento algum, supor que pudesse ser diferente: Walter é expressão de sua época, filho de seu tempo, e não vemos isso com estranheza, pelo contrário: estes aspectos elucidam os mecanismos imaginativos que operavam no período e repercutem finalmente na análise dos itens coletados em campo pelo arqueólogo. Praticamente toda a arqueologia do período era regida por esses paradigmas que resistiam às críticas da escola boasiana.
Não só os arqueólogos europeus trabalhavam com categorias evolucionistas; mas também arqueólogos filhos do evolucionismo da arqueologia americana da década de 1950, que aportou em Lagoa Santa com Betty Meggers. Foi seguidora fiel das orientações acadêmicas de Julian Steward, seu mestre e formulador, segundo Carlos Fausto, do “. . . mais influente modelo continental . . .”[1], proposto na década de 1940 nos cinco volumes de Handbook of South American Indians. O modelo escalonava a diversidade cultural do continente sul-americano a partir de determinantes ecológicos, econômicos e sócio-políticos, dos mais primitivos aos mais evoluídos, criando as categorias: povos marginais, tribos da floresta tropical, região circuncaribenha e Andes setentrionais e, finalmente, Andes Centrais e Costa do Pacífico. Essa arqueologia americana estava, pelo menos desde 1940, sob forte influência de uma ecologia cultural e de um determinismo ecológico, o que repercutiu determinantemente na elaboração do modelo.
Segundo Eduardo Góes Neves, “o pensamento de Steward pode ser visto como uma mistura de elementos evolucionistas e difusionistas”[2].
Para Steward, os Incas estavam no topo dessa estratificação por terem desenvolvido um complexo modo de produção, religião institucionalizada com templos monumentais, desenvolvimento da metalurgia e manutenção de um complexo aparelho de Estado hierarquizado, burocratizado e centralizador.
A herança evolucionista de Steward foi sedimentada por Elman Service em 1962, quando operando com tipologias semelhantes e inspirado ainda por Darwin designou os estágios: bando, tribo, cacicado e estado, para a análise de povos ameríndios. A herança é tão forte que, ainda hoje, arqueólogos brasileiros operam a partir das mesmas categorias.
Antecedeu a obra que nos serve de fonte, ainda, a publicação das proposições de Willay e Phillips, que em 1955 estipularam, a partir dos mesmos preceitos evolucionistas, as categorias: arcaico, formativo e clássico como horizontes evolutivos, que apesar de terem influenciado fortemente a arqueologia americana, segundo Cristina Barreto “. . . nunca vingaram na arqueologia brasileira moderna”[3].
Walter atribuiu aos primeiros humanos habitantes de Lagoa Santa necessidades de seu tempo presente, como as de registrar paisagens vistas para acesso futuro, intencionalmenteevidenciando seus mecanismos culturais. Pressupôs, desse modo, que as pinturas rupestres ali encontradas pudessem ter sido realizadas com a finalidade de registro para acesso futuro, quando parecem ter obedecido à uma lógica ritualística mágico-religiosa muito própria, que parecia mais influir na ação cotidiana, principalmente de caça e cultivo agrícola. Posteriormente, o próprio autor mencionaria isso, dizendo que

a vontade de pintar animais de caça e símbolos curiosos, talvez fizesse parte de um costume mágico ou ritual, que se desenvolveu espontaneamente em muitos países, à medida que o homem adquiria um certo grau de inteligência e cultura.[4]

O registro da flora e fauna existentes, conforme designado como uma atividade catalográfica, seria residual em relação a essa finalidade maior. O interesse por isso é dos arqueólogos no presente, não dos homens primitivos que os desenharam no passado.
É certo que no tempo de Walter as duas gerações da Escola dos Annales já haviam resolvido essas questões metodológicas no campo da escrita da História, definindo o erro como anacronismo; mas sequer os arqueólogos de formação sabiam disso, houve um descompasso enorme entre as teorias e métodos desenvolvidos em História e as narrativas em arqueologia que, descalibradas em relação à historiografia, só descobririam os Annales a partir da década de 1960, no berço da New Archaeology.
O uso dessas categorias como um processo linear, que os levaria inevitavelmente a uma Idade dos Metais (que já teria sido alcançada pelos Incas), faz supor que todos os grupos humanos assistiriam, ainda que em tempos distintos, com maior ou menor rapidez, ao mesmo percurso “evolutivo”, havendo líderes e “retardatários” numa corrida rumo à civilização.

Embora o homem de Lagoa Santa tenha habitado a região durante vários milhares de anos, sem contudo, atingir a um alto grau de cultura, pode-se verificar pelas explorações, uma ascendência gradual de qualidade nos seus instrumentos de pedra, quartzo e osso. ( . . . ) Ele era um retardatário conservador, e preferia aceitar a vida tradicional da sua família ou da tribo a procurar melhorar sua condição. O resultado é que, apesar da sua evolução lenta, jamais chegou à fase de produzir metais, conhecer a tecelagem, fazer figuras de barro e construir habitações permanentes, que eram as características das civilizações pré-Colombianas da costa ocidental da América do Sul[5].

E continua dizendo que o homem primitivo de Lagoa Santa seria

o indivíduo típico da Idade da Pedra, classificado numa categoria bem afastada das raças altamente civilizadas da costa oeste [povos Incas] . . .[6]

Walter parece ter operado, se não com as categorias criadas por Steward, pelo menos a partir do espírito geral de sua obra, onde na classificação quadripartite colocava, no topo, as civilizações dos Andes Centrais, com especial lugar para o império Inca. Walter operou então com a idéia que segundo Carlos Fausto havia sido

. . . concebida de cima para baixo. O império Inca, como o ápice do desenvolvimento no continente, acabou por definir os demais tipos por carência, levando à caracterização dos povos das terras baixas pela negativa.[7]

Walter analisou o homem “primitivo” de Lagoa Santa mais pela carência em relação à “civilização” do que por suas especificidades, coberto pelo que Carlos Fausto chamou de “a sombra monumental do Inca”. Também, a floresta tropical, ao que de fato Fausto se referia, Lagoa Santa, arriscamos dizer que foi “. . . julgada ao revés, por aquilo que não tinha . . .”[8]
Walter, de certa forma, herdou o determinismo ecológico de Meggers, que por sua vez o recebeu de Steward. Meggers conseguiu fincar suas convicções e fazer reproduzir a crença de que

. . . nós não tínhamos o que os incas tinham porque o incremento e adensamento populacional nas terras baixas teriam esbarrado na pobreza de recursos naturais, o que inibia o desenvolvimento de formas sociopolíticas complexas.[9]

A este respeito, Edna June Morley afirma que

. . . a ausência de construções monumentais como, por exemplo, as existentes no Egito, no México ou no Peru; como conseqüência, [faz supor que] o homem do Brasil pré-histórico não seria “civilizado”, uma vez que não dedicou seu tempo a erigir pirâmides ou grandes templos.[10]

Fica claro que, para Walter as sociedades mais complexas constituíam sociedades “melhores”, “progressistas” e “cultas”, sem observar seu motriz impulsionador: a própria ação produtora de cultura a partir da interferência humana no meio ambiente, de forma transformadora, para atender às necessidades de sobrevivência. Ao invés disso, ao incorporar juízos de valor em sua análise, dialogou mais com suas referências do que com uma análise temporal e espacialmente localizada, dos objetos como portadores de sentidos atribuídos pelos homens que os produziram. Walter, portanto, anulou as distâncias entre o presente e o passado na medida em que interpretou os objetos a partir de suas próprias referências culturais. É como se o passado fosse, tão simplesmente, um presente anterior onde o arqueólogo poderia projetar a si mesmo na análise de seus achados, acotovelando-se com os índios primitivos no mesmo espaço temporal.
Isso é evidente no trecho em que, ao analisar o passado, revelou seus valores presentes, atribuindo-os ao homem no passado como um reflexo distorcido de si mesmo:

[Os homens primitivos de Lagoa Santa] não tiveram animais domésticos no mesmo sentido em que as raças civilizadas os criam e utilizam, hoje em dia. Também não aravam, nem cultivavam a lavoura. Viviam, dia após dia, na feliz ignorância do mundo além da sua vizinhança e não tinham qualquer estímulo para melhorar as suas condições de vida. Se um índio pensava em uma inovação, isto era considerado um tabu e o padrão da sua existência permanecia o mesmo por muitas centenas e mesmo alguns milhares de anos.[11]

Sua constante busca pelo estabelecimento de comparativos entre as culturas de Lagoa Santa com as pré-históricas européias, por meio das civilizações andinas, valida a idéia de que ali reside a civilização em oposição à barbárie, pelo fato de ali a saga evolutiva ter sido desencadeada antes das Américas. Frágil concepção uma vez que, tendo sido a África o berço da humanidade, não seria ela a portadora do fardo de civilizar aos ingleses? Certamente não, pois o darwinismo social, inspirador de uma sociologia genética e de uma antropologia fundada epistemologicamente com a missão de comprovar a inferioridade das raças perante a civilização, estava presente ainda nos discursos de intelectuais dos mais diversos matizes teóricos, validando o neo-colonialismo que muito pouco tempo antes havia partilhado o continente africano entre as então mais ricas potências mundiais.
Observa-se a recorrência, no discurso de Walter, dos termos como “mais primitivos” ou “indústria lítica rudimentar”[12], termos que aparecem sem o complemento de uma construção comparativa, como: mais primitivo que ...; ou rudimentar em relação a ... O padrão comparativo não aparece senão nas entrelinhas: a idéia de “mais civilizado”, “não rudimentar”, o que equivaleria à civilização ocidental e médio-oriental, na concepção do inglês do século XIX na Lagoa Santa do XX.
Se seguirmos o raciocínio de Manuela Carneiro da Cunha, podemos dizer que Walter estava envolvido no que designou como “ilusão de primitivismo”, uma das maiores armadilhas no estudo da história indígena.

Na segunda metade do século XIX, essa época de triunfo do evolucionismo, prosperou a idéia de que certas sociedades teriam ficado na estaca zero da evolução, e que eram portanto algo como fósseis vivos que testemunhavam do passado das sociedades ocidentais. Foi quando as sociedades sem Estado se tornaram, na teoria ocidental, sociedades “primitivas”, condenadas a uma eterna infância. E porque tinham assim parado no tempo, não cabia procurar-lhes a história.[13]

Houve, portanto, um transporte de valores para o campo e, depois de escavadas as peças, para a análise dos objetos tridimensionais, e assim, para a comunicação dos resultados que acreditava ter obtido.
A partir desses critérios, Walter passou a escalonar as culturas ali definidas segundo os valores descritos, a partir da comparação a um modelo civilizacional (termo mais acertadamente determinado se pensarmos como oposição à barbárie). Ia, portanto, de uma cultura “mais baixa” àquela que se pudesse relacionar, por verossimilhança, ao seu conceito de civilização. Senão vejamos, em suas próprias conclusões:

O primeiro nível cultural, que é o mais baixo, pertence à época pré-cerâmica, quando floresceu uma indústria de pedra bruta, consistindo principalmente de instrumentos com o mínimo de lavragem, afiamento e polimento.[14]

Criou ainda, em função dessa lógica, uma hierarquia entre os abrigos que escavou e suas respectivas camadas estratigráficas, comparando o conjunto das peças obtidas com as tipologias nas quais iam sendo inseridas:

Embora os aborígenes responsáveis pela última camada [estratigráfica do sítio abrigo de “Eucalipto”] fôssem mais civilizados que seus predecessores e alguns dos seus objetos lembrem os dos tempos mais recentes, eram eles atrasados em muitos aspectos, se compararmos com os habitantes de Sumidouro e Cerca Grande. [o grifo é nosso][15]

Em função das características culturais estabelecidas sob esses critérios, o arqueólogo concluiu que os grupos humanos que habitavam o abrigo de Eucalipto (ao qual se refere a passagem acima) seria um dos mais antigos, do qual teriam descendido todos os habitantes de Lagoa Santa. Não é aventada a possibilidade de essa dinâmica cultural ter se dado em virtude de ali o conjunto de necessidades, aliado às determinações geográficas e hábitos culturalmente estabelecidos, não ter demandado o desenvolvimento dos mesmos artefatos escavados nos abrigos utilizados pelo autor como parâmetro comparativo, por estarem mais próximos de sua convenção de civilização.
Em seguida, é o abrigo de Mãe Rosa que, por não trazer nenhum fragmento de cerâmica no resultado das escavações, foi posto em uma categoria cultural “baixa”, levando-o à conclusão de que, por tratar-se de grupos pré-cerâmicos, teriam sido os primeiros a ali chegar e que, em seguida, abandonaram o local migrando para outros abrigos onde “evoluíram”.

. . . o nível cultural de Mãe Rosa revela-se por sua indústria primitiva e rudimentar, lítica e de osso, denotando um grau de cultura inferior em comparação a outros abrigos da região.[16]

Os níveis superiores na hierarquia estabelecida entre os sítios de Lagoa Santa são ocupados pelos abrigos de Sumidouro, onde Lund fez importantíssimas descobertas, as quais, nas palavras de Walter, a partir da

. . . qualidade superior de pontas e de instrumentos de pedra e osso, o conhecimento de uma indústria mais desenvolvida de cerâmica e a prática da arte pictórica levam à suposição de que os últimos índios que habitavam em Sumidouro tinham uma cultura mais elevada. ( . . . ) Sumidouro pode ser considerado o período mais elevado da vida indígena em abrigos . . .[17]

A atribuição de valores presentes ao passado, no caso específico de Sumidouro, torna perigosa a projeção, pois leva a minorizar a importância de outros sítios, por vezes, muito mais informativos, apesar de menos “ricos” segundo os padrões eleitos por Walter, como o da cerâmica e de uma indústria lítica polida. Vejamos em suas próprias palavras: “. . . outras localidades em Lagoa Santa são insignificantes em comparação a esta [o abrigo de Sumidouro]”[18].
Seu escalonamento teria na base inferior, portanto, Mãe Rosa, “. . . uma cultura primitiva da era pré-cerâmica”[19]; em seguida um segundo período ainda inferior, de Eucalipto, Samambaia e Limeira, onde apesar de não existir cerâmica, há uns poucos sinais de polimento em machados; o terceiro período estaria evidenciado em camadas estratigráficas superiores ainda de Eucalipto, Samambaia e Limeira, onde foram encontrados cacos de cerâmica e artefatos de pedra já mais polidos em relação aos das camadas mais profundas; o quarto período do Sumidouro, Marciano e Cerca Grande “. . . pelas suas maravilhosas pinturas rupestres”[20].

O legado

Harold Victor Walter morreu em agosto de 1976 de insuficiência cardíaca, em Belo Horizonte, aos 78 anos de idade.
Como legado, deixou nada mais, nada menos que a maior coleção do mundo: 38 crânios intactos e semi-intactos coletados por uma mesma equipe, na região de Lagoa Santa.
Durante muito tempo a coleção de Walter permaneceu com a família, que conta com um arqueólogo de formação, Fernando Costa, sobrinho-neto de Harold Walter. Após o fim da Academia Mineira de Ciências o acervo foi doado para o Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais que, em 1995, o enviou aos cuidados da Universidade de São Paulo para ter um tratamento adequado.
A coleção é vastíssima e só o arqueólogo Walter Neves, do Laboratório de Estudos Evolutivos da Universidade de São Paulo, segundo publicado pelo Jornal “O Estado de Minas”, catalogou e reconstituiu 2.650 peças.[21]
Em 1999, de volta ao Museu de História Natural da UFMG, a coleção pôde ser vista pelo público mineiro durante as comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, provando sua importância e atualidade na discussão sobre uma identidade brasileira[22].

Conclusões

Quanto mais se reafirma a idéia de conquista não a de descobrimento mais relevante se torna a coleção de Harold Walter no sentido identitário para a compreensão de um período tão fortemente obscurecido pelo estigma da “pré-história”.
Mais relevante ainda, é conhecermos nossos antepassados como nós mesmos e não como bárbaros diante de nós, pensando-nos civilizados.
O maior acervo mundial do Homem de Lagoa Santa não é uma herança irrelevante, nela pode estar contida a chave que um dia elucidará a questão da antigüidade do homem na América. Por sua fundamental importância, um de seus crânios esteve exposto em São Paulo no módulo “Arqueologia” na “Mostra do Redescobrimento”, com 7 a 8 mil anos de antigüidade, impondo aos seus observadores a necessidade pelo real descobrimento desse território conquistado, o qual foi imposto o nome de “Brasil”.
Esperamos ter localizado teórico-metodologicamente Harold Walter, o arqueólogo sem formação direta nessa área científica e que colecionou um histórico imenso de descobertas em sítios arqueológicos de Lagoa Santa - como continuador da tradição de Lund .
Um inglês do século XIX na Lagoa Santa do XX, um homem filho do seu tempo, vivendo em um período de mudanças na Arqueologia não só em relação às novas técnicas de datação, mas também no que tange às concepções teóricas que deixavam o evolucionismo de Darwin para abraçar a crítica boasiana, rompendo com o escalonamento que tantos outros estudiosos como Walter haviam edificado após décadas de trabalho.
Não reconhecer a colaboração dada por arqueólogos como Walter é desconhecer a própria história da arqueologia no Brasil, e se quisermos retomar questões ainda irresolutas, como a da antiguidade da ocupação humana na América, não podemos fazê-lo sem antes voltar à Lagoa Santa, por meio da gigantesca e riquíssima coleção de Harold Walter e às chaves que ela ainda esconde.

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[1] Índios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 11.
[2] O velho e o novo na arqueologia amazônica. Revista USP. São Paulo, n. 44, p. 86-111, dez/fev 1999-2000, p, 89.
[3] Op. cit. p. 45.
[4] Op. cit. p. 100.
[5] Ibid. pp. 97 e 98.
[6] Ibid. p. 130.
[7] Op. cit. p. 15.
[8] Ibid. p. 22.
[9] Citada por FAUSTO, Carlos. Op. cit. p. 25.
[10] Como preservar os sítios arqueológicos brasileiros. In: TENÓRIO, Maria Cristina. Pré-História da Terra Brasilis. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999, p. 374.
[11] WALTER. H.V. op. cit. p. 127.
[12] Op. cit. p. 49.
[13] Introdução a uma história indígena. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, s/d, p. 11.
[14] Op. cit. p. 50.
[15] Ibid. p. 54.
[16] Ibid. p. 71.
[17] Ibid. pp. 84 e 85.
[18] Ibid. p. 85.
[19] Ibid. p. 96.
[20] Ibid. 96.
[21] De volta às origens da América: exposição vai mostrar a maior coleção do mundo sobre o Homem de Lagoa Santa. O Estado de Minas. Belo Horizonte, 11 de out. 1999, p. 34.
[22] FLEURY, Ana Carolina. op. cit.

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Este artigo foi publicado pela Revista História e-História em 24/10/2008, que é uma publicação organizada com apoio do NEE-Núcleo de Estudos Estratégicos/Arqueologia da Unicamp. Disponível em: <http://www.historiahistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=119>. Acesso em: 14 nov 2008.