segunda-feira, 30 de março de 2009

NEANDERTHAL: ENTRE A HUMANIDADE PLENA OU PARCIAL

Ponta Levallois do Musteriense


Prof. Lic. Eduardo Melander Filho


Teria o Homo neanderthalensis desenvolvido consciência e consecutivamente linguagem simbólica, com a capacidade de produzir arte? Seria ele possuidor de uma humanidade igual à nossa?
Sabe-se que animais não possuem apenas conduta genética, mas também acumulam informações e aprendem. Existem vários tipos de conhecimento: o filogenético, que constitui o acumulado ao largo da evolução e gravado nos genes e o ontogenético, que se adquire durante a vida e são transmitidos através da cultura. O comportamento animal pode ser explicado pelo jogo entre impulsos e comportamentos reflexos, que são inatos e adquiridos. Não há qualquer tipo de consciência. Animais não são capazes de fazerem planos a longo prazo, nem de observarem a si mesmos, nisso consiste a consciência humana. Obviamente que os animais querem e sabem, mas não sabem que sabem, nem sabem que querem. A consciência humana se dirige a si mesma; somos conscientes de ter consciência e filosofamos sobre ela.
Descartes, com seu “cogito, ergo sum” (penso, logo existo), nos remete a outras verdades e nessa ordem: Deus e o mundo. São dois: um interno e outro externo, e a essência do interno é o pensamento e a consciência. Jerry Fodor, psicólogo, propõe a divisão da mente entre percepção, que é obtida por uma série de módulos independentes entre si e inatos e cognição, que é produzida em um sistema central que realiza operações mentais, ou seja, o pensamento.
Os Neanderthais desenvolveram, assim como nós, o modo técnico IV de lascamento, através da cultura Chatelperronense. Produziram materiais simbólicos, tais como: colares e anéis. No entanto, pelo fato de tal cultura aparecer somente depois do aparecimento do Aurinhense Cro-magnon (Homo sapiens), muitos dizem que a produção dos adornos se deu por imitação. Walter Neves mesmo afirma que os Neanderthais podem ter imitado sem dar valor simbólico. Os sítios Chatelperronense que conhecemos são:
- Sítio Saint Cesaire, onde foi encontrado parte de crânio e mandíbula de Neanderthal;- Caverna da Rena em Arcy-sur-Cure, onde encontraram restos fragmentários de Neanderthal. Foram encontrados também ferramentas, dentes e ossos perfurados ou em sulcos, contas e anéis de marfim, junto com fósseis marinhos também utilizados como adorno pessoal;- Sítio Quinçay, onde encontraram seis dentes perfurados na raiz.
Outras indústrias Neanderthais interpretadas como modo técnico IV, são as culturas Uluzziense na Itália, Szeletiense na Europa Central, Bachokiriense na Bulgária.
Enterravam também os seus mortos juntamente com mobiliário funerário, com todo o simbolismo que isso acareta. Dentre os sepultamentos e os adornos encontrados, podemos citar:
- Chifres de cabra selvagem com menino, em Teshik Jash, no Uzbequistão;
- Ossos de urso em cova com laje, em Régourdou, na França;
- Pedra lascada sobre o coração de um menino, em Dederiyeh, na Síria;
- Flores sobre os esqueletos de Shanidar, no Iraque;
- Pó de hematita sobre o esqueleto de Lê Moustier, na França.

FONTES:

MELANDER FILHO, Eduardo. Neanderthal: Entre a Humanidade Plena ou Parcial. Gazeta de Interlagos. Gazeta de Interlagos, São Paulo, 27 mar 2009 a 08 abr 2009. História, p. 2.

MELANDER FILHO, Eduardo. Neanderthal: Entre a Humanidade Plena ou Parcial. Gazeta de Interlagos. Gazeta de Interlagos, São Paulo, 27 mar 2009 a 08 abr 2009. P. 2. Disponível em: <
http://colunadoleitor.gazetadeinterlagos.com.br/#Noticia_4c2e862543>. Acesso em: 30 mar 2009.

domingo, 15 de março de 2009

A CULTURA SEGUNDO EDWARD B. TYLOR E FRANZ BOAS

A expressão cultural Assurinã representada por meio da pintura corporal

Proc. Lic. Eduardo Melander Filho

Tylor definiu Cultura como a expressão da totalidade da vida social do homem, caracterizada pela sua dimensão coletiva, adquirida em grande parte inconscientemente e independente da hereditariedade biológica. Privilegiou a palavra Cultura por entender que Civilização remete a constituição de realizações materiais dos homens, perdendo o sentido quando se trata de sociedades primitivas. Para Tylor, a sua nova definição de Cultura, que era descritiva e não normativa (sem conceitos pré-determinados), tinha a vantagem de ser uma palavra “neutra” capaz de pensar em toda a humanidade. Acreditava na idéia de progresso, nos postulados evolucionistas, na unidade psíquica da humanidade (todos temos a mesma capacidade mental) e na concepção universalista da Cultura (a cultura enquanto algo de toda a humanidade). A grande contribuição de Tylor, foi sua tentativa de conciliar a evolução da Cultura e sua universalidade. Foi o primeiro a abordar os fatos culturais sob um prisma sistemático e geral.
Quando esteve no México, Tylor elaborou um método de estudos da evolução da cultura pelo exame das sobrevivências culturais (elementos culturais do passado que sobrevivem sem explicação plausível). Pensava ser possível, através desse método, reconstituir o conjunto cultural original, chegando a conclusão de que a cultura dos povos primitivos representava a cultura original da humanidade. Adotou, a partir daí, o método comparativo, pois as culturas singulares estavam ligadas umas as outras em um movimento de progresso cultural, sendo possível dessa maneira, estabelecer uma escala dos estágios da evolução humana.
Tylor postulava que entre primitivos e civilizados não havia uma diferença de natureza, mas de grau de avanço no caminho da cultura. Considerava também, em certos casos, a hipótese difusionista (que a partir de um povo determinada invenção se expandia aos outros através do contacto cultural) como explicação da similaridade entre traços culturais de duas sociedades, significando que, na possibilidade de difusão, as mesmas não estariam na mesma escala de evolução.
Por outro lado, a concepção de Cultura de Franz Boas é uma rejeição ao evolucionismo unilateral e difusionista. Em consequência, não adotava explicações de estágios ou fases culturais, assim como o conceito de raça. Procurava leis de evolução das culturas e leis de funcionamento das sociedades através do método indutivo (ver, ouvir, falar, escrever) e intensivo de campo. Priorizou o estudo da relação de parentesto.
Boas acreditava na autonomia das Culturas (relativismo cultural) e que cada cultura possui uma singularidade cultural (algo único). Segundo ele, a cultura se manifesta pelos costumes.
Entre 1883/1884, participou de uma expedição a Baffin como geógrafo. Lá realizou estudos sobre os Esquimós, onde percebeu que a organização social era determinada mais pela Cultura do que pelo meio ambiente.
Boas tomou como objeto de estudo a particularidade de cada Cultura. Apresentava-se como a contraposição ao evolucionismo do século XIX e foi o precursor da antropologia cultural norte americana. Foi também o fundador do método monográfico em antropologia.


FONTES:

MELANDER FILHO, Eduardo. A Cultura Segundo Edward B. Tylor e Franz Boas. Gazeta de Interlagos, São Paulo, 13 mar 2009 a 26 mar 2009. História, p. 2.

MELANDER FILHO, Eduardo. A Cultura Segundo Edward B. Tylor e Franz Boas. Gazeta de Interlagos, São Paulo, 13 mar 2009 a 26 mar 2009. P. 2. Disponivel em: <
http://www.gazetadeinterlagos.com.br/colunadoleitor.html#2>. Acesso em: 16 mar 2009.

A RELAÇÃO ENTRE A ARTE FIGURATIVA GREGA DO PERÍODO ARCAICO E OS POEMAS HOMÉRICOS

Eduardo Melander Filho
Resenha crítica sobre o texto: Aprendendo a ler no escuro. In: Homero e os artistas, de Anthony Snodgrass.

“não conseguimos detectar, na arte do século VIII, um único reflexo incontestável do impacto dos poemas homéricos. Podemos até querer ir mais longe, a ponto de dizer que não achamos sequer uma obra de arte com a qual se possa argumentar de modo convincente em favor de uma tal inspiração”.
SNODGRASS, Anthony.



O autor situa o século VIII a.C. como o período em que se deu a retomada da arte grega, após uma interrupção de quase quatro séculos. Essa arte é figurativa, com figuras humanas, divinas e de animais, inseridas em artefatos de cerâmica, que aparecem em ambientes funerários como marcos visíveis ou enterrados, em santuários de divindades ou de heróis e, raramente, em ambientes domésticos.
Posiciona-se diante da problemática, segundo a qual as cenas inscritas nos artefatos do séc. VIII a.C. seriam inspiradas nos poemas Homéricos. Critica as várias versões, tanto a que investe na interpretação de que as representações foram inspiradas nos poemas Homéricos e, concluindo assim, que eles já estariam em circulação naquela época, quanto a que as correlaciona, indicando que, se pinturas retratam ação de personagens que também são retratados em ação semelhante por Homero, então, provavelmente, tais cenas tenham sido extraídas de Homero.
Considera também que as cenas figurativas arcaicas são muito difíceis de interpretar, mas, ainda assim, possuem um conjunto de regras que são, geralmente, respeitadas.

A Figura 1, decoração de uma cratera encontrada em um túmulo em Creta é um dos raros exemplares que pode tranqüilamente ser datado de antes de 800 a.C., sendo que, inclusive, cenas figurativas já eram conhecidas antes dessa época. É o retrato de uma ação reconhecível, apresentando um estilo identificável. Trata-se de uma luta entre um homem e dois leões, sendo que um deles abocanha a cabeça do homem e outro o seu pé. O homem, apesar da situação, ainda movimenta ameaçadoramente sua espada, indicando que seu destino fatal está longe de concretizar-se. Talvez, mesmo, não se concretize, como na cena de um escudo de bronze decorado, também de Creta, em que heróis colocam propositalmente, ao que tudo indica, suas cabeças com capacetes entre as mandíbulas de leões que eles iriam matar. É empregada a técnica do desenho de uma silhueta escura sobre um fundo claro, sendo que não há margem e linha de base onde as figuras possam se apoiar, dando a impressão de estarem flutuando num espaço vazio. É uma cena que, possivelmente, não corresponde a uma cena do cotidiano.

A Figura 2 aparece numa ânfora (vaso de duas alças) de Atenas, encontrado sobre (parte dentro) de um túmulo. A técnica de desenho é a mesma da anterior. Era um tipo de jarro, segundo fortes indícios, depositado em túmulos de mulheres. A própria cena inscrita no vaso confirma essa vocação, pois se trata de cena mostrando a exposição do cadáver de uma mulher, com pessoas chorando. Um grande número de figuras compõe a cena, que apresenta diferenciações, notadamente entre homens, que estão aparentemente nus e as mulheres, vestidas até os tornozelos, e entre adultos e uma única figura menor, que é uma criança ou, talvez, um jovem. Os homens portam armas nos flancos, o que é uma característica de outras muitas cenas em que os varões apresentam-se como guerreiros. Há também uma diferenciação entre vivos, em posição vertical, e os mortos, em posição horizontal.
O que distingue a pintura da Fig. 2 da pintura da Fig. 1 é sua observância de regras. Há um nítido enquadramento em que todas as figuras, até mesmo a do ataúde em que descansa a mulher morta, compartilham uma linha de base comum. Há uma fórmula regular com a qual as figuras humanas foram desenhadas, em que a cabeça é mostrada de perfil e o queixo proeminente, para destacar o sentido em que ela se volta. O torso é visto frontalmente em forma de triângulo isósceles equilibrado sobre seu vértice, destacando nas figuras uma cintura de vespa e as pernas também em perfil, com os músculos da coxa e da panturrilha apresentando um contorno curvilíneo. Os braços são mostrados em destaque, não acima do torso, executando gestos e ações. A técnica de silhueta escura sobre fundo claro é sempre presente nas representações humanas, ainda que mais tarde, adiante no tempo, aparecerá um olho não pintado, com um pequeno ponto central indicando a íris e a pupila. Mas é percebido, que parte do ataúde é cruzado por riscos em linhas e a mortalha, suspensa sobre ele, tem um padrão estampado em xadrez.
Esse estilo “rigorosamente econômico” de representar figuras humanas tem origens em períodos anteriores ao séc. VIII a.C., quando, durante mais de um século, as faixas ou os padrões de motivos geométricos: meandros, cruzes, suásticas, círculos concêntricos, losangos e outros padrões, em cor preta intensa ou com um contorno de finos traços cruzados, como na superfície do ataúde da Fig. 2, foram os principais meios de decorar cerâmica. Por volta da metade do séc. VIII a.C., essa “decoração geométrica” havia alcançado um estágio avançado, denominado de “geométrico tardio I” da arte de Atenas, em que predominavam os elementos de riscos cruzados, como os presentes nos painéis que cercam a cena funerária da Fig. 2. Os artistas do séc. VIII a.C., efetivamente, no desejo de incorporar cenas de caráter figurativo e de caráter abstrato, adotaram “princípios geométricos” de seu repertório na feitura de suas figuras, empregando a silhueta em cor preta intensa para lhes dar destaque.


Essa observação de regras aparece também na F. 3, que apesar de se apresentar num estado mais fragmentário é a versão masculina da Fig. 2. Essa figura adorna uma cratera maior que o exemplar Cretense que vimos no início. É uma forma de vaso Ateniense, ao que tudo indica usado como marco funerário, pois o morto dessa vez é um homem e as cenas tratam de temas com conteúdo masculino. O morto está sendo pranteado por varões jovens e adultos. Aqui, vê-se que a “regra de uma linha de base comum” pode ser maleável. Na parte de cima, mulheres sentadas e outros “pranteadores” são agrupados em “caixas” na parte superior, à direita e à esquerda. Os dois sexos aparecem erguendo as mãos à cabeça, possivelmente para arrancar os cabelos, cena essa que aparece também na Fig. 2. Essa cena, característica na pintura geométrica tardia tem correspondências com outras culturas de diversas temporalidades. Aos lados do ataúde, apresentam-se carros puxados por cavalos que avançam, cada qual, com um auriga e um guerreiro carregando um tipo de escudo que aparecerá em outras cenas de modo recorrente. Abaixo da cena funerária surgem outros carros numa área separada. Um outro veículo com rodas, aparentemente, esteve presente na “caixa” da parte superior esquerda. Abaixo da alça direita do vaso é parcialmente visível um navio de guerra e sua tripulação. O elemento central dessa cena, que aparece em mais de cinqüenta outros exemplares, é a exposição do cadáver de um homem ou de uma mulher. É uma composição padrão.



A Fig. 7 está inscrita num pequeno cântaro de vinho, possivelmente encontrado no interior de um túmulo ateniense, pois não existe documentação comprobatória. Muito bem preservado, possui um friso com figuras na parte larga do bojo. O autor numerou as figuras na Fig. 8 do texto, para facilitar a descrição. O cântaro encontra-se há mais de um século no Museu do Louvre, em Paris.
Na interpretação de Nikolaus Himmelmann, trata-se de um campo de batalha quase no seu final. Há quinze figuras humanas. Quatro delas adotam gestos que nunca tinham sido vistas representadas dessa forma. Duas agarram o cimeiro de elmo dos vizinhos equipados com escudos de forma estranha. Duas figuras investem em direção às armas de duas outras que portam o mesmo escudo. Há diferença marcante entre os dois grupos de combate, parecendo que a ação indica o desarmamento de prisioneiros derrotados. No entanto, a figura número nove saca sua espada para usar na oito, que ela agarra com o braço. A um está prestes a sacar a espada, com o cotovelo flexionado. A número quatro está desarmada e caindo, enquanto a sete e a catorze parecem estar mortas. Ao que tudo indica, a cena refere-se ao desarme de prisioneiros, que são massacrados em seguida. Essa cena foi datada em aproximadamente 730 a.C.
Snodgrass diz que há obstáculo na comparação da cena inscrita no objeto com a temática de Homero e esse obstáculo consiste exatamente no aspecto da caracterização. Houve, nessa cena, a exploração dos limites do estilo geométrico, transmitindo ação e reação, mas não apareceu um personagem que se pudesse registrar um nome. Há dificuldade em atribuir uma individualidade aos participantes da ação e no máximo, as cenas podem sugerir uma possibilidade de caracterização como personagens Homéricas.
Alguns autores sustentam que o modo de composição oral empregado por Homero, “implica na existência de limites rigorosos, reduzindo a capacidade de conceder um caráter a um personagem individual”. O autor não concorda, citando Jasper Griffin e Oliver Taplin como compartilhantes de sua opinião, afirmando que a habilidade de Homero consiste, mais exatamente, na sua capacidade de caracterização. Ele se refere a Agamêmnon quando altera o seu humor, demonstrando falta de determinação e indecisão. Apresenta Nestor como generoso e Menelau mais simpático e menos cruel que seu irmão Agamêmnon. Assim, vai caracterizando um a um: Patroclo, Príamo, Heitor, Enéias e outros personagens da Ilíada e Odisséia.
Para muitos leitores, a capacidade de individualização é a grande virtude de Homero. No entanto, alguns autores interpretam que existe uma ligação entre Homero e a arte geométrica. K. Friis Johansen interpreta essa cena como a representação do duelo entre Ájax e Heitor, numa versão pré-Homérica da Ilíada, que seriam os guerreiros cinco e oito. No entanto, o autor indaga o porque de existirem na cena uma gama de guerreiros e o porque o artista não se concentrou nos dois personagens principais, que, na verdade, não se distinguem de maneira nenhuma dos outros personagens.


A Fig. 4 é um tema funerário em que aparece um personagem avançando num grande passo, defrontando-se com uma dupla de guerreiros bem próximos um do outro.


A Fig. 10, que é uma pintura do final do geométrico, datado em aproximadamente 700 a.C., é de Argos e não de Atenas. É uma decoração inserida num fragmento de uma grande cratera. Na figura há um par de guerreiros de pé. Fica bem claro que não estão próximos como na figura quatro, mas sim unidos pelo tronco. Trata-se de gêmeos siameses. É em Hesíodo que buscamos referências diretas, num fragmento do Catálogo das Mulheres, que narra a história da mãe dos gêmeos, que após deitar-se com o Treme-terra (Enosigeos) ou Poseidon, de a luz a Ctéato e Êurito. Outras histórias narram que eram guerreiros notáveis e que cada um teve ao menos um filho. Lutaram contra Heracles, que depois de uma emboscada os matou. Homero provavelmente os conhecia. Na Ilíada, um dos filhos dos gêmeos é morto por Heitor. São diretamente mencionados nas reminiscências de Heitor por duas vezes. Na primeira, quando em guerra contra os Epeus. Heitor mata cem homens, mas não consegue matar os gêmeos porque são ajudados na sua fuga por Poseidon. Na segunda, quando Heitor, após vencer várias competições atléticas, perde na corrida de carros para os gêmeos, pois estes “prevaleciam por seu número”.
O autor estranha algumas características das duas passagens advertindo que há um paralelismo entre elas, pois em ambas, os gêmeos interrompem os êxitos de Nestor e que, apesar de sua deformidade, “eram adversários terríveis”. E é exatamente a ausência de uma referência explícita a essa deformidade, que faz o autor se perguntar se Homero sabia de sua existência. Sendo que a primeira referência da lenda veio de um poeta que vivia no continente, Hesíodo, Homero, que era da Jônia, na Ásia Menor, pode não ter conhecido a história detalhadamente.
Uma outra questão é levantada: a da relação entre os gêmeos lendários e a representação das figuras duplas. Das 14 pinturas de figuras duplas conhecidas, 6 são de Atenas, 4 da Beócia, terra de Hesíodo, 1 de Argos, 1 de Corinto, 1 da Arcádia e 1 da Lacônia. Pinturas com esse tema cessam a partir do séc. VII a.C. Nem todas mostram deformidade com clareza como na Fig. 10. Há inclusive uma escola de pensamento que diz que apenas poucas versões posteriores representam os gêmeos siameses, e que a maioria delas, incluindo as primeiras de estilo geométrico, era apenas convenção de mostrar duas figuras sobrepostas, argumento que o autor diz não se sustentar no caso dos últimos exemplares.


A Fig. 11 (acima) aparece num cântaro de Atenas, datado de mais ou menos 720 a.C.. É a representação da batalha entre dois guerreiros a pé e outros dois que compartilham de um escudo retangular, combatendo em retirada para seu carro. As extremidades da cimeira dos elmos aparecem unidas. Seriam os Actóridas-moliônidas (os gêmeos)? Seria a batalha relembrada por Nestor no Canto XI da Ilíada? O autor diz que seria “aceitável” a versão da luta com Nestor, com Poseidon tirando seus filhos da luta. Porém, considerando que eram mesmo os gêmeos siameses e que seu principal oponente era Heracles, pelo fato de ser a figura mais comum em Atenas e do autor da pintura ser ateniense, o autor do texto resiste à tese homerista.


A Fig. 12 é posterior a 720 a.C., sendo a obra mais recente. Pode ter vindo da terra e época de Hesíodo. Nela, a deformidade dos gêmeos é patente. É a representação de uma batalha corpo a corpo, a pé, contra um homem que brande a espada e lança, portando uma aljava nas costas. Note-se que arco e flecha, na Ilíada de Homero, tinha uma má reputação, mas aparece na versão mais antiga de Heracles. Provavelmente, então, aqui o que se mostra é Heracles, que lutou pelo menos uma vez contra os gêmeos antes da emboscada fatal, demonstrando não haver, nesse caso, nenhuma ligação com a temática de Homero.


A Fig. 13 está inscrita num vaso de formato novo que se encontra no Museu Britânia. Supõe-se ser originário de Tebas.
O tema da cena é o de um navio de guerra, movido a remo. Aparece com os remadores a postos, pronto a largar. Do lado esquerdo da pintura aparecem um homem e uma mulher imensos. O homem, que está com um pé quase a bordo, segura o punho da mulher, que, na mão vazia, segura uma guirlanda ou coroa. Está de pés juntos, como se resistisse. A cena sugere um rapto.
No entanto, o próprio Homero nos relata que segurar o punho era uma saudação ou despedida e as guirlandas eram carregadas em ocasiões festivas. Assim, várias interpretações são sugeridas: o rapto de uma mulher em um festival; a fuga de Ariadne para casar com Teseu; fuga de Medeia com Jasão, daí a ênfase no navio que seria a “Argo” ou mesmo, a fuga de Helena para casar com Paris, homologando a inspiração homérica.
Contudo, a semelhança com um objeto 700 anos mais antigo, coloca a hipótese da influência de Homero em cheque. Aparece na Fig. 13ª, um anel de ouro gravado, encontrado nas proximidades de Cnossos, expoente da arte Minóica. Nele está representado um casal grande à esquerda de um navio proporcionalmente pequeno. Em outro anel posterior, mas também da Idade do Bronze, aparecem duas figuras de grande tamanho próximas a um barco. Há também uma série de pinturas de vasos de navios de guerra, do período Micênico tardio, encontrados em Cinos, na Lócrida de Opunte, do séc. XII a.C., que mostram semelhanças com cenas de navios do período geométrico, sugerindo que pinturas do séc. VIII a.C. vêm de uma tradição muito antiga. Podemos chegar a duas conclusões: A cena se baseia numa lenda da vida de um comandante de navio ateniense do séc. VIII a.C. ou se baseia numa lenda muito mais antiga e perdida no tempo. Como diz literalmente o autor: “Novamente, não há situações inspiradas nos poemas homéricos".



A Fig. 14, da cena em um cântaro que se encontra em Munique, representa um navio emborcado. Equivale, ou poderia equivaler, a narração na íntegra contida no canto XII da Odisséia, onde Odisseu narra que um raio fulmina seu último navio. A descrição detalhada de Odisseu revela o elemento essencial dessa narrativa: Odisseu é o único sobrevivente.
Snodgrass comenta em seu texto, que tudo indicava que se referia ao trecho homérico, até aparecer à análise de Gudrun Ahlberg-Cornell. Nela ele ressalta que todos os personagens estão agarrados ao navio ou a alguém e que a própria figura central (Odisseu?) ajuda a um companheiro. Ele, o personagem central, não está sentado no mastro, mas está mantendo a cabeça fora dágua. Há também um homem em posição horizontal, que é uma posição de morte, mas que pode ser interpretada como uma posição de estar voltado para a morte. O mais importante é que, de acordo com essa interpretação, eles têm a chance de sobreviver. E se sobrevivem, não são personagens homéricos.


A Fig. 15 é a última cena de arte geométrica, datada em meados de 700 a.C.. Foi encontrada na Isquia e pertence ao meio Jônico de Homero. É uma impressão de um selo de pedra num jarro usado para transporte de vinho, azeite, etc... Representa um guerreiro armado com duas lanças em riste, carregando no ombro um companheiro gigantesco desarmado. Uma série de impressões do mesmo selo foi achada numa placa de terracota em Samos, no santuário de Hera. Há vários casos posteriores e semelhantes, como o da Fig. 16, do início do séc. VI a.C., que indica ser essa a iconografia utilizada para representar Ájax resgatando o corpo de Aquiles do campo de batalha.

Não se sabe se foi esse o seu significado desde o início, mas Snodgrass admite que a história de Ájax e Aquiles já estava na cabeça do artista. Reconhece também que é o primeiro caso identificável com a saga de Tróia. Porém, não a partir das obras de Homero, pois esse episódio, o resgate, ocorre no intervalo entre a Ilíada e Odisséia. Referência aparece no canto XXIV da Odisséia, quando o fantasma de Agamêmnon diz ao fantasma de Aquiles que “nós” carregamos seu corpo. Com o passar do tempo, isso passaria a ser obra de Ájax e preservado em um dos poemas do Ciclo épico, o relicário da Etiópida, que não é de autoria de Homero.
O autor do texto em reflexão, Anthony Snodgrass, tem como objetivo, segundo suas próprias palavras, discutir, partindo de uma posição “intermediária” (nem tanto), às posições daqueles, que ele chama de fundamentalistas, que professam a tese baseada em que os artistas do período geométrico tiveram a intenção explícita de representar cenas homéricas e daqueles chamados de ultracéticos, que negam qualquer intenção narrativa por parte dos artistas da época. Nesse texto específico, o autor rebate as teses dos fundamentalistas, apoiado em parâmetros de temporalidade, que deslocaria a produção literária de Heródoto para um período posterior ao do que se deu a produção da arte geométrica, e de espacialidade, considerando o local de produção das obras artísticas geométricas, a maioria de Atenas ou do continente, em oposição à Jônia, local onde Heródoto viveu e produziu suas obras, oposição essa referente a contextos distintos onde mitologias de mesma origem são diferenciadas, além de repertórios temáticos que enfatizam um ou outro mito regionalmente.
Localizando a produção da arte geométrica ao longo do período transcorrido durante o séc. VIII a.C., após quase 400 anos de ausência quase total de expressão artística relevante, o autor revela que os historiadores têm pouca ou nenhuma informação desse período, além do fato das regras de composição temática das obras não terem sido ainda esboçadas, o que não facilita em nada a análise do período. Nesse sentido, a arqueologia fornece pelo menos o contexto em que se insere o período.
Sempre, segundo o autor, havia de longa data uma espécie de “consenso” entre os historiadores, que a Ilíada, em sua forma Homérica, surgiu na metade do séc. VIII a.C., mesma época em que se deu a produção de arte geométrica grega. Porém recentemente, principalmente dentro da chamada “tradição britânica”, a data de produção da Ilíada homérica foi alterada para período posterior. Quanto a Odisséia, parece que há uma concordância mais ou menos geral de que ela toma sua forma homérica final em meados do séc. VII a.C.. Martin West chega mesmo a defender que Homero compôs suas epopéias depois de Hesíodo. Walter Burkert, Alain Ballabriga, Olivies Taplin, Matthew Dickie, Hans van Wees e outros estudiosos afirmam que a Ilíada foi composta no séc. VII a.C. ou em período posterior. O autor, mesmo não concordando necessariamente com a “mudança” de datação dessa tradição literária, nos mostra que a simples existência do argumento, coloca em dúvida a afirmação de que os temas geométricos foram inspirados por Homero.
Snodgrass não para por aí, simplesmente, nas generalizações. Parte agora para o estudo e a discussão, caso a caso, da validade da inspiração homérica. Como empecilhos definidores da negação dessa inspiração, sugere: a caracterização de Homero ao personagem permite lhe dar um nome, o que não acontece na cena analisada (Fig. 7); a ausência de uma deformidade dos gêmeos nos escritos de Homero (Fig. 10); a distância dos contextos de produção das obras entre o artista ateniense e Heródoto da Jônia (Fig. 11); a ausência de ligação temática entre as obras (Fig. 12); a semelhança com temas minóicos de setecentos anos antes da obra analisada (Figs. 13 e 13ª); a possibilidade de salvamento dos marinheiros representados em contraposição ao destino dos marinheiros de Odisseu na Odisséia homérica (Fig. 14); a cena se inspira em outras tradições literárias (Figs. 15 e 16).
De nossa parte, tendemos a considerar que o surgimento dos escritos homéricos como forma acaba, devem datar em meados do séc. VII a.C., pelo fato de que os artefatos artísticos do período geométrico não apresentarem indícios de escrita, o que pode indicar ausência dela ou que seu uso se desse de maneira muito restrita, condição essa que se contrapõe ao necessário desenvolvimento dela, para que uma obra de tal envergadura pudesse ser registrada literariamente.
Outra consideração é a de que, realmente, as obras homéricas não tenham inspirado diretamente a produção dos artistas geométricos. No entanto, muito provavelmente, tanto as figuras do período geométrico, quanto à epopéia de Homero, tenham se inspirado numa fonte ou num conjunto de fontes comum. As lendas e os mitos tiveram origens regionais e, a partir daí, se disseminaram no mundo grego, adotando formas e adaptações próprias em cada região ou cidade de sua nova adoção. Assim, uma lenda ou mito de mesma origem possui versões diferentes, adotadas por outras distintas tradições. Homero, por sua vez, produziu uma versão literária dessa tradição ou conjunto de tradições, influenciando, a partir daí, toda a temática icônica até o período helenístico. A arte geométrica pode possuir assim uma ligação indireta com a obra homérica, através de uma mitologia comum, diferenciada em termos de versão e distinta pela indefinição dos personagens, característica essa fundamental na obra de Homero: a da individualização das personalidades. Versões essas, muitas vezes, separadas pela distância e pelo tempo.
Por último, paralelamente, se a obra de Homero não corresponde diretamente à produção artística do séc. VIII, o mesmo não pode se dizer da sociedade que ele descreve. As fontes arqueológicas, como os vestígios encontrados em Lefkanti, que permitiram a reconstrução da sociedade da época, parecem corroborar a descrição homérica. Trata-se de uma sociedade baseada no oikói e não na sociedade micênica como se pensava anteriormente. Mas esse é um outro tema, que exige outra reflexão.

FONTE:

SNODGRASS, Anthony. Aprendendo a ler no escuro. In: SNODGRASS, Anthony. Homero e os Artistas. Primeira ed. Cambridge, 1998. Trad. bras. SP. 2004.

segunda-feira, 2 de março de 2009

A EVOLUÇÃO DA ESCRITA NA GRÉCIA PRÉ-CLÁSSICA

Escrita Linear A

Escrita Linear B


Prof. Lic. Eduardo Melander Filho

Na idade do Bronze, utilizava-se do selo como instrumento de controle da estocagem da produção, que conhecemos através de sua forma direta ou através da impressão, sistema utilizado no nordeste do Mar Egeu, nas Ilhas Cíclades, em Creta, no Peloponeso (sul da Grécia) e na Grécia central. De formatos zoomórficos (forma de animais), cônicos, piramidais, prismáticos, cilíndricos e outros, os selos eram feitos de terracota, metal, marfim ou pedras diversas. Tinham como função: imprimir uma decoração sobre um vaso ou como marca de oleiro (ceramista). Aplicado sobre a lacração de vasos contendo produtos, funcionava como instrumento de controle econômico.
Nos tempos finais do Bronze, com o surgimento dos primeiros palácios, houve a difusão mais generalizada do uso do selo, conforme 2.300 objetos referentes a selos ou impressões encontrados em escavações arqueológicas. Os materiais também se diversificaram, utilizando-se a cornalina, ágata, cristal de rocha e outros na fabricação dos selos. Diversificaram-se também os motivos com o aparecimento de sinais de escrita, zoomorfos e antropomorfos (de forma humana) organizados em cenas. A maioria deles era utilizada para proteger sistemas de fecho e como sinal de quem exerce esse controle, privado ou oficial. Surgiram também as marcas de oleiro, as marcas de pedreiro, a escrita hieroglífica e a escrita línear A.
As marcas de oleiro são incisões ou impressões por selo, de motivos geométricos simples, em vasos antes de sua cozedura. Aparecem como motivos correntes: a “mão enluvada” e o “bicrânio”, que também são sinais que aparecem nas escritas hieroglífica e linear A.
As marcas de pedreiro aparecem em blocos de pedra talhadas nos sítios cretenses. São sinais de escrita ou geométricos, ligados à pedreira de origem do material ou ao pedreiro.
A escrita hieroglífica surgiu como um fenômeno novo. Análogos (semelhantes) aos encontrados nos selos, são sinais: geométricos (ziguezague, cruz, flecha, triângulo); evocando objetos (machado simples, machado duplo, vasos, navio, casa, sol, lua, montanha, flores e plantas); evocando animais (peixes, quadrúpedes, pássaros, insetos) e evocando homens (em pé, sentado, olho, mãos, pernas).
Provavelmente é uma escrita de sistema silábico de tipo aberto, como a linear A e a linear B. A língua é desconhecida, mas a natureza dos textos é conhecida por analogia (comparação) com textos do sistema linear B e por estarem repletos de cifras: trata-se de arquivos contáveis em numeração decimal. É um sistema de controle da atividade econômica ligado ao sistema palacial de organização da sociedade e da economia.
A escrita linear A, possui um terço de seus sinais análogos à hieroglífica, com uma diminuição de sinais figurativos e aumento de sinais geométricos. Provavelmente é também silábica de tipo aberto. A presença de ideogramas (sinais que representam idéias) também é notória, como notória é a ausência de sinais dessa escrita em selos. A língua, possivelmente flexionada, é desconhecida, correndo-se o risco de se chegar a ler sem compreender. Também nesse caso a natureza dos textos é conhecida: são arquivos contábeis de matérias primas, manufaturados, alimentação, animais, homens e mulheres.


FONTES

MELANDER FILHO, Eduardo. A Evolução da Escrita na Grécia Pré-Clássica. Gazeta de Interlagos: São Paulo, 27 fev 2009 a 12 mar 2009. História, p. 2.

MELANDER FILHO, Eduardo. A Evolução da Escrita na Grécia Pré-Clássica. Gazeta de Interlagos: São Paulo, 27 fev 2009 a 12 mar 2009. P. 2. Disponível em: <
http://www.gazetadeinterlagos.com.br/colunadoleitor.html#2>. Acesso em: 02 mar 2009.