A Fig. 13 está inscrita num vaso de formato novo que se encontra no Museu Britânia. Supõe-se ser originário de Tebas.
O tema da cena é o de um navio de guerra, movido a remo. Aparece com os remadores a postos, pronto a largar. Do lado esquerdo da pintura aparecem um homem e uma mulher imensos. O homem, que está com um pé quase a bordo, segura o punho da mulher, que, na mão vazia, segura uma guirlanda ou coroa. Está de pés juntos, como se resistisse. A cena sugere um rapto.
No entanto, o próprio Homero nos relata que segurar o punho era uma saudação ou despedida e as guirlandas eram carregadas em ocasiões festivas. Assim, várias interpretações são sugeridas: o rapto de uma mulher em um festival; a fuga de Ariadne para casar com Teseu; fuga de Medeia com Jasão, daí a ênfase no navio que seria a “Argo” ou mesmo, a fuga de Helena para casar com Paris, homologando a inspiração homérica.
Contudo, a semelhança com um objeto 700 anos mais antigo, coloca a hipótese da influência de Homero em cheque. Aparece na Fig. 13ª, um anel de ouro gravado, encontrado nas proximidades de Cnossos, expoente da arte Minóica. Nele está representado um casal grande à esquerda de um navio proporcionalmente pequeno. Em outro anel posterior, mas também da Idade do Bronze, aparecem duas figuras de grande tamanho próximas a um barco. Há também uma série de pinturas de vasos de navios de guerra, do período Micênico tardio, encontrados em Cinos, na Lócrida de Opunte, do séc. XII a.C., que mostram semelhanças com cenas de navios do período geométrico, sugerindo que pinturas do séc. VIII a.C. vêm de uma tradição muito antiga. Podemos chegar a duas conclusões: A cena se baseia numa lenda da vida de um comandante de navio ateniense do séc. VIII a.C. ou se baseia numa lenda muito mais antiga e perdida no tempo. Como diz literalmente o autor: “Novamente, não há situações inspiradas nos poemas homéricos".
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A Fig. 14, da cena em um cântaro que se encontra em Munique, representa um navio emborcado. Equivale, ou poderia equivaler, a narração na íntegra contida no canto XII da Odisséia, onde Odisseu narra que um raio fulmina seu último navio. A descrição detalhada de Odisseu revela o elemento essencial dessa narrativa: Odisseu é o único sobrevivente.
Snodgrass comenta em seu texto, que tudo indicava que se referia ao trecho homérico, até aparecer à análise de Gudrun Ahlberg-Cornell. Nela ele ressalta que todos os personagens estão agarrados ao navio ou a alguém e que a própria figura central (Odisseu?) ajuda a um companheiro. Ele, o personagem central, não está sentado no mastro, mas está mantendo a cabeça fora dágua. Há também um homem em posição horizontal, que é uma posição de morte, mas que pode ser interpretada como uma posição de estar voltado para a morte. O mais importante é que, de acordo com essa interpretação, eles têm a chance de sobreviver. E se sobrevivem, não são personagens homéricos.
A Fig. 15 é a última cena de arte geométrica, datada em meados de 700 a.C.. Foi encontrada na Isquia e pertence ao meio Jônico de Homero. É uma impressão de um selo de pedra num jarro usado para transporte de vinho, azeite, etc... Representa um guerreiro armado com duas lanças em riste, carregando no ombro um companheiro gigantesco desarmado. Uma série de impressões do mesmo selo foi achada numa placa de terracota em Samos, no santuário de Hera. Há vários casos posteriores e semelhantes, como o da Fig. 16, do início do séc. VI a.C., que indica ser essa a iconografia utilizada para representar Ájax resgatando o corpo de Aquiles do campo de batalha.
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Não se sabe se foi esse o seu significado desde o início, mas Snodgrass admite que a história de Ájax e Aquiles já estava na cabeça do artista. Reconhece também que é o primeiro caso identificável com a saga de Tróia. Porém, não a partir das obras de Homero, pois esse episódio, o resgate, ocorre no intervalo entre a Ilíada e Odisséia. Referência aparece no canto XXIV da Odisséia, quando o fantasma de Agamêmnon diz ao fantasma de Aquiles que “nós” carregamos seu corpo. Com o passar do tempo, isso passaria a ser obra de Ájax e preservado em um dos poemas do Ciclo épico, o relicário da Etiópida, que não é de autoria de Homero.
O autor do texto em reflexão, Anthony Snodgrass, tem como objetivo, segundo suas próprias palavras, discutir, partindo de uma posição “intermediária” (nem tanto), às posições daqueles, que ele chama de fundamentalistas, que professam a tese baseada em que os artistas do período geométrico tiveram a intenção explícita de representar cenas homéricas e daqueles chamados de ultracéticos, que negam qualquer intenção narrativa por parte dos artistas da época. Nesse texto específico, o autor rebate as teses dos fundamentalistas, apoiado em parâmetros de temporalidade, que deslocaria a produção literária de Heródoto para um período posterior ao do que se deu a produção da arte geométrica, e de espacialidade, considerando o local de produção das obras artísticas geométricas, a maioria de Atenas ou do continente, em oposição à Jônia, local onde Heródoto viveu e produziu suas obras, oposição essa referente a contextos distintos onde mitologias de mesma origem são diferenciadas, além de repertórios temáticos que enfatizam um ou outro mito regionalmente.
Localizando a produção da arte geométrica ao longo do período transcorrido durante o séc. VIII a.C., após quase 400 anos de ausência quase total de expressão artística relevante, o autor revela que os historiadores têm pouca ou nenhuma informação desse período, além do fato das regras de composição temática das obras não terem sido ainda esboçadas, o que não facilita em nada a análise do período. Nesse sentido, a arqueologia fornece pelo menos o contexto em que se insere o período.
Sempre, segundo o autor, havia de longa data uma espécie de “consenso” entre os historiadores, que a Ilíada, em sua forma Homérica, surgiu na metade do séc. VIII a.C., mesma época em que se deu a produção de arte geométrica grega. Porém recentemente, principalmente dentro da chamada “tradição britânica”, a data de produção da Ilíada homérica foi alterada para período posterior. Quanto a Odisséia, parece que há uma concordância mais ou menos geral de que ela toma sua forma homérica final em meados do séc. VII a.C.. Martin West chega mesmo a defender que Homero compôs suas epopéias depois de Hesíodo. Walter Burkert, Alain Ballabriga, Olivies Taplin, Matthew Dickie, Hans van Wees e outros estudiosos afirmam que a Ilíada foi composta no séc. VII a.C. ou em período posterior. O autor, mesmo não concordando necessariamente com a “mudança” de datação dessa tradição literária, nos mostra que a simples existência do argumento, coloca em dúvida a afirmação de que os temas geométricos foram inspirados por Homero.
Snodgrass não para por aí, simplesmente, nas generalizações. Parte agora para o estudo e a discussão, caso a caso, da validade da inspiração homérica. Como empecilhos definidores da negação dessa inspiração, sugere: a caracterização de Homero ao personagem permite lhe dar um nome, o que não acontece na cena analisada (Fig. 7); a ausência de uma deformidade dos gêmeos nos escritos de Homero (Fig. 10); a distância dos contextos de produção das obras entre o artista ateniense e Heródoto da Jônia (Fig. 11); a ausência de ligação temática entre as obras (Fig. 12); a semelhança com temas minóicos de setecentos anos antes da obra analisada (Figs. 13 e 13ª); a possibilidade de salvamento dos marinheiros representados em contraposição ao destino dos marinheiros de Odisseu na Odisséia homérica (Fig. 14); a cena se inspira em outras tradições literárias (Figs. 15 e 16).
De nossa parte, tendemos a considerar que o surgimento dos escritos homéricos como forma acaba, devem datar em meados do séc. VII a.C., pelo fato de que os artefatos artísticos do período geométrico não apresentarem indícios de escrita, o que pode indicar ausência dela ou que seu uso se desse de maneira muito restrita, condição essa que se contrapõe ao necessário desenvolvimento dela, para que uma obra de tal envergadura pudesse ser registrada literariamente.
Outra consideração é a de que, realmente, as obras homéricas não tenham inspirado diretamente a produção dos artistas geométricos. No entanto, muito provavelmente, tanto as figuras do período geométrico, quanto à epopéia de Homero, tenham se inspirado numa fonte ou num conjunto de fontes comum. As lendas e os mitos tiveram origens regionais e, a partir daí, se disseminaram no mundo grego, adotando formas e adaptações próprias em cada região ou cidade de sua nova adoção. Assim, uma lenda ou mito de mesma origem possui versões diferentes, adotadas por outras distintas tradições. Homero, por sua vez, produziu uma versão literária dessa tradição ou conjunto de tradições, influenciando, a partir daí, toda a temática icônica até o período helenístico. A arte geométrica pode possuir assim uma ligação indireta com a obra homérica, através de uma mitologia comum, diferenciada em termos de versão e distinta pela indefinição dos personagens, característica essa fundamental na obra de Homero: a da individualização das personalidades. Versões essas, muitas vezes, separadas pela distância e pelo tempo.
Por último, paralelamente, se a obra de Homero não corresponde diretamente à produção artística do séc. VIII, o mesmo não pode se dizer da sociedade que ele descreve. As fontes arqueológicas, como os vestígios encontrados em Lefkanti, que permitiram a reconstrução da sociedade da época, parecem corroborar a descrição homérica. Trata-se de uma sociedade baseada no oikói e não na sociedade micênica como se pensava anteriormente. Mas esse é um outro tema, que exige outra reflexão.
FONTE:
SNODGRASS, Anthony. Aprendendo a ler no escuro. In: SNODGRASS, Anthony. Homero e os Artistas. Primeira ed. Cambridge, 1998. Trad. bras. SP. 2004.