quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Escavações Arqueológicas num Sambaqui Fluvial - Parte I

FOTO: O arqueólogo Paulo Dantas De Blasis, coordenador do projeto.

SUMÁRIO


1- INTRODUÇÃO

2- OS TRABALHOS REALIZADOS

2.1- O SÍTIO DE ESCAVAÇÃO

2.2- OS TRABALHOS DE ESCAVAÇÃO

2.2.1- Primeiro dia – 17/09/2006
2.2.2- Segundo dia – 18/09/2006
2.2.3- Terceiro dia – 19/09/2006
2.2.4- Quarto dia – 20/09/2006
2.2.5- Quinto dia – 21/09/2006
2.2.6- Sexto dia – 22/09/2006
2.2.7- Sétimo dia – 23/09/2006

2.3- AS ATIVIDADES EM LABORATÓRIO

2.3.1- Lavagem e secagem do material recolhido na escavação
2.3.2- Distribuição do material na mesa de trabalho
2.3.3- Classificação da arqueofauna
2.3.4- Colagem do material fragmentário
2.3.5- Caracterização, classificação e numeração dos líticos
2.3.6- Medição da arqueofauna maior
2.3.7- Os artefatos ósseos
2.3.8- Registro em inventário da arqueofauna

3- A ARQUEOLOGIA DE SAMBAQUIS

3.1- A QUADRÍCULA D-34

3.2- O SAMBAQUI DO MORAES

3.3- SAMBAQUIS DO RIBEIRA DO IGUAPE

3.4- A GRANDE QUESTÃO


4 – GLOSSÁRIO

5 - BIBLIOGRAFIA
1- INTRODUÇÃO

Pensamos na elaboração deste escrito, de início, de maneira concisa, de no máximo dez páginas. Minha inabilidade não conseguiu evitar que ele se tornasse extenso. Seria, de qualquer maneira, injustiça não deixar registrados, ou pelo menos sugeridos, todos aqueles momentos, que foram importantes sob o ponto de vista intelectual, didático, de aprendizado mesmo, mas também sob o ponto de vista afetivo; apaixonamos-nos pela arqueologia realizada. Assim, nosso trabalho se desenvolveu numa tentativa de aproximação da rigorosidade.
Nossa intenção, foi a de registrar todos os passos dos trabalhos desenvolvidos durante os últimos meses. Para isso tomamos algumas liberdades, inclusive a de relatar, na primeira parte do texto, quase que em forma de diário, com citações sobre o clima e o tempo. São registros que, de uma forma ou outra, indicam detalhes da geografia do local em que se desenvolveram os trabalhos de campo.
Além da anotação dos passos, fizemos questão de registrar todos os inventários, detalhes, descrições, para que este relatório possa ter alguma utilidade em alguma pesquisa que porventura necessite desses registros.
A primeira parte é descritiva, onde relatamos os trabalhos em campo e laboratório, constituindo em conseqüência, todo um inventário dos materiais arqueológicos recolhidos.
Na segunda parte, nos esforçamos em elaborar uma análise da quadrícula na tentativa de formular algumas hipóteses, utilizando argumentos que, com todos os defeitos que com certeza têm, consideramos válidos. Em seguida, passamos ao sítio, ao Vale do Ribeira e à questão geral dos Sambaquis, sempre tentando incorporar a discussão local, ampliando-a ao geral.
Destacamos como questão geral a importância didática de todo trabalho em campo e laboratório, assim como na elaboração deste relatório final.
Destacamos como questão central, a constituição do Sambaqui enquanto monumento, espaço ritual segregado do espaço de moradia, naquilo que Polignac aponta como a separação do mundo dos vivos do mundo dos mortos, como condição necessária para que haja uma delimitação do território de um grupo social politicamente organizado. Witfogel já havia percebido isso nos estudos das Sociedades Hidráulicas e Gordon Childe também. E nada me indica que estudar o aparecimento de sociedades desaparecidas a partir do estabelecimento de monumentos de rituais de fundo religiosos, entre em choque com a perspectiva de se estudar também sob o enfoque do modo de produção e da luta de classes.
Por fim, somamos outros objetivos aos trabalhos desenvolvidos. Registramos em fotografia, de forma analógica e digital, os contextos dos trabalhos realizados em campo e em laboratório, além do registro dos artefatos, líticos e arqueofauna, produtos de coleta em escavação. O esforço fotográfico foi aliado ao curso de Fotografia Aplicada, realizado no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Juntamos assim, didaticamente, duas atividades numa só.
2- OS TRABALHOS REALIZADOS

2.1- O SÍTIO DE ESCAVAÇÃO

O sítio do Sambaqui do Moraes localiza-se a nove Km da cidade de Miracatu-SP, Vale do Ribeira, às margens, praticamente, do córrego de mesmo nome, afluente do Rio São Lourenço, encravado num bananal de propriedade particular. Tem uma elevação de mais ou menos 2 m e cerca de 30 m de diâmetro. Limita-se ao sul e oeste com uma vala de irrigação, à leste com o córrego e ao norte com um terreno plano. É cortado por uma pequena estrada no sentido norte-sul em sua porção oeste, sendo envolvido em todos os lados por um bananal. O ponto Z (nível 0) está situado na parte central e mais alta do Sambaqui.
As escavações se organizam por quadrículas de um metro por um, sendo localizadas por letras, num sentido crescente, de oeste para leste, e números, também crescentes, de norte para sul, a partir de um ponto Zero (de contagem). Assim, o ponto Z (nível 0) está localizado entre as coordenadas L e M, assim como entre as 19 e 20, distanciando-se 22,5 m ao sudeste do ponto Zero (de contagem).
Nessa temporada, foram escavadas quadrículas das linhas E e F, dos números 20 ao 35, além da D-34 que fica rente à pequena estrada e de outras quadrículas no alto do Sambaqui, próximas ao nível Z, dando continuidade às escavações empreendidas pela expedição anterior de 2004.

2.2- OS TRABALHOS DE ESCAVAÇÃO

As escavações envolveram uma rotina de trabalho diário, que se desenvolveu entre os dias 17/09/2006 e 23/09/2006. Resumidamente, consistiu numa série de procedimentos, sendo os mais importantes:

- medição dos níveis de profundidade da quadrícula;
- escavação pela técnica de decapagem e recolha da arqueofauna, líticos e artefatos visíveis;
- peneiragem do material resultante da decapagem, lavagem no riacho e recolha de materiais menores;
- acondicionamento do material recolhido em saquinhos plásticos e vedados, com numeração própria por categoria de material (artefatos ósseos, líticos, arqueofauna) e por níveis de dez em dez centímetros;
- identificação dos níveis de profundidade, através do nivelador de distância, dos materiais importantes encontrados;
- observação geral da escavação e da estratigrafia, e registro dos aspectos observados.

Passamos, então, ao relato dos trabalhos que se desenvolveram e dos registros resultantes de tal esforço.

2.2.1- Primeiro dia – 17/09/2006.

Iniciamos os trabalhos já à tarde deste mesmo dia. Chegamos ao Sítio do Moraes por volta das 14:00 hs. Observamos de início, os vários sedimentos que se apresentam na encosta do barranco que fica rente à pequena estrada que rasgou o Sambaqui na porção oeste. São quatro segmentos e bem visíveis. Terra preta em cima, paleopraia embaixo, indicando que o terreno se situava às margens de um curso d’água. O concheiro é constituído de caramujos da espécie Megalobulimus, hoje praticamente extinta na região pela introdução há anos de um similar africano destinado à produção de carne (Scargot). Espécimes africanos escaparam, competindo com os nativos e se tornando extremamente venenosos aos seres humanos.
Após a apresentação geral do Sambaqui, o que incluiu duas covas incrustadas no barranco rente à estrada, de onde foram retirados vários enterramentos anteriormente, iniciamos a retirada de “pedra de brita” das quadrículas, que foram preenchidas por elas após a última escavação, no sentido de preservar o contexto do sítio das intempéries e intrusões. Este sistema vem a substituir com sucesso o preenchimento do espaço com sacos de terra ou areia, pois é muito menos trabalhoso e suscita menos atenção de estranhos, quando a equipe deixar o local.
Houve também a apresentação, com instruções de manejo, do nivelador de distância.
O ambiente era de chuva, garoa e neblina.

2.2.2- Segundo dia – 18/09/2006.

Choveu praticamente o dia todo, principalmente à tarde, quando montamos uma cobertura de plástico preto na área de escavação. Os caminhos viraram uns lamaçais, principalmente o que leva ao riacho, onde peneiramos e lavamos o material.
Pela manhã, foram feitas as medições, estabelecendo os marcadores que definiram as quadrículas. Todos escolheram as suas, e eu, a D-34. Em alguns casos, houve mais de uma pessoa trabalhando numa. Foi o nosso caso. Eu e a Quéfren trabalhamos conjuntamente na D-34, na parte da tarde e no dia 19/09/2006. No dia 20/09/2006 ela voltou a São Paulo.
As marcações de nível inicial foram:

- Z = 336 cm NE
- Z = 330 cm SE
- Z = 355 cm NO
- Z = 350 cm SO

Os registros nas fichas de nível de escavação foram:

Nível 00 – 10

- NP- 2326 – arqueofauna
- Pedra queimada – descartada – y=26 cm – x= 22 cm – z= 0-10 cm

Nível 10 – 20

- NP- 2360 – arqueofauna
- NP- 2333 – machado – y= 14 cm – x= 31 cm – z= 346 cm
- NP- 2347 – seixo lascado – y= 38 cm – x= 4 cm – z= 354 cm

É importante ressaltar que, na parte da tarde, ficou decidido que iríamos escavar apenas a metade leste da quadrícula D-34, pois havíamos atingido um bloco de argila na metade oeste, além dessa metade estar bem rente onde foi rasgada a pequena estrada, estando, portanto, provavelmente contaminada com o aterro resultante de tal corte. A continuidade da escavação na metade leste era necessária, pois, além de haver um seixo incrustado na parede leste da quadrícula, havia possibilidade de se encontrar restos de um sepultamento, que foi encontrado na expedição anterior na E-34. Havia também o objetivo de se atingir o máximo de profundidade, a fim de se desenhar o perfil estratigráfico, pois a D-34 se localiza nos limites do Sambaqui.


FOTO - Linha de escavação, sentido sul.

2.2.3- Terceiro dia – 19/09/2006.

O dia foi ensolarado, apesar de garoar um pouco de manhã. Importante ressaltar a presença de poucos líticos e muito carvão no nível 20 – 30, alguns no 30 – 40, indicando algum tipo de combustão. Foram encontrados também, muitos dentes de animais entre os níveis 20 e 40.
Digno de registro, uma concentração de pedras em leque, provavelmente resultante de rolagem Encontrado no final do dia, um afloramento de ossos, depositado sobre uma mancha de concheiro, que somente neste nível de escavação começa a aparecer.
As marcações de nível inicial, pela manhã, foram:

- Z = 351 cm NE
- Z = 354 cm SE
- Z = 355 cm NO
- Z = 350 cm SO
- Z = 356 cm Centro (metade oeste)
- Z = 360 cm Centro (metade leste)

FOTO- Pedra queimada descartada – y= 26 cm – x= 22 cm – z= 00 – 10

Os registros nas fichas de nível de escavação foram:

Nível 20 – 30

- NP- 2374 – arqueofauna
- NP- 2376 – arqueofauna
- Seixo descartado – y= 84 cm – x= 16 cm – z= 351 cm



FOTO - Concheiro aparecendo. Afloramento ósseo sobre ele. Marcações de profundidade coincidem com marcação inicial do dia 20/09/2006. Quadrícula D-34.

Nível 30 - 40

- NP- 2386 – arqueofauna
- NP- 2393 – arqueofauna
- NP- 2392 – seixo grande – y= 10 cm – x= 0 cm – z= 364 cm
- Seixo descartado – y= 38 cm – x= 12 cm – z= 367 cm
- NP- 2388 – seixo – y= 39 cm – x= 28 cm – z= 368 cm
- NP- 2389 – seixo – y= 29 cm – x= 46 cm – z= 372 cm
- NP- 2391 – seixo – y= 16 cm – x= 32 cm – z= 371 cm
- Seixo (permanece no local) – y= 0 cm – x= 16 cm – z= 365 cm
- Seixo descartado – y= 13 cm – x= 39 cm – z= 375
- Seixo pequeno descartado – y= 10 cm – x= 17 cm – z= 370 cm
- Seixo pequeno descartado – y= 24 cm – x= 7 cm – z= 368 cm
- Seixo pequeno descartado – y= 2 cm – x= 22 cm – z= 3,69 cm

Nível 40 – 50

- NP- 2406 – arqueofauna

Os seixos do nível 30 – 40 serão mais bem caracterizados mais na frente, quando retomaremos. Importante perceber a medida de profundidade dos, por enquanto assim classificados, seixos. Aqueles que foram descartados mantivemos em nosso arquivo particular.

2.2.4- Quarto dia – 20/09/2006

Pela manhã, neblina e garoa. À tarde, chuva que transformou os caminhos em lodaçais.
Durante a escavação, enquanto o nível 40 – 50 estava quase terminado, houve a orientação de continuar a decapagem apenas no quarto SE da D-34, pois apareceu um osso incrustado na parede sul, que poderia ser de restos humanos, além de também cumprir o objetivo de atingir o solo de granito, a fim de desenhar o perfil estratigráfico desse “fim de Sambaqui”. Destaque para esse osso incrustado, para o conjunto de ossos que foi retirado (ossos sobre o concheiro) e osso furado, possivelmente propositalmente, para ser usado como artefato.
As marcações de nível inicial foram:

- Z = 372 cm NE
- Z = 370 cm SE
- Z = 375 cm Centro (metade leste)
Os registros na ficha de nível foram:

Nível 40 - 50

- NP- 2433 – arqueofauna
- NP- 2434 – líticos
- NP- 2431 – conjunto de ossos – y= 49 cm – x= 15 cm – z= 374 cm
- NP- 2488 – osso incrustado (recolhido em 21/09/2006) – y= 0 – x= 32 cm – z= 380 cm

Nível 50 – 60

- NP- 2438 – arqueofauna
- NP- 2437 – osso com sinais de trabalho – y= 38 cm – x= 37 cm – z= 388 cm

2.2.5- Quinto dia – 21/09/2006.

O dia foi ensolarado, apesar da neblina de manhã e dos caminhos ainda terem permanecido bem enlameados.
Foi recebida a orientação de aprofundar mais, embora tenha chegado ao nível 70 no final do dia. Escavar mais fundo foi difícil pela posição que o corpo teve de tomar. Pelo fato de a D-34 delimitar visivelmente o final do sítio, tornou-se necessária a elaboração do perfil. Daí a providência de se cavar mais.
Continuamos a decapagem entre os níveis 50 – 60 cm. No entanto, por distração, ultrapassamos em profundidade. Por isso, juntamos dois níveis num só, o 50 – 70, que equivalem apenas ao quarto SE da D-34.
Os níveis de início, nessa data, foram:

- Z = 380 cm NE
- Z = 381 cm SE
- Z = 384 cm Centro (quarto NE)
- Z = 386 cm Centro (quarto SE)
Os registros foram:

Nível 50 - 70

- NP- 2489 – arqueofauna
- NP- 2468 – ponta óssea – y= 20 cm – x= 31 cm – z= 395 cm
- NP- 2480 – artefato ósseo (anzol) – na peneira – z= 60 – 70

Vale a pena destacar que foi encontrada uma placa de dente de capivara. Levy Figuti comentou que é um caso raro e que é o segundo encontrado nessa expedição. Posteriormente, em laboratório, encontramos entre o material recolhido um dente inteiro de capivara.

2.2.6- Sexto dia – 22/09/2006.

Não choveu. Pelo contrário, fez um ótimo dia.
Colhemos material até o nível 80. Após esse nível, encontramos argila pura e nenhum material de coleta. Avançamos até o nível 90, quando encontramos o granito.
Constatamos a presença de várias pedras entre os níveis 70 – 80, dez unidades na verdade, que foram descartadas, dispensando medidas individuais.
As medidas de níveis iniciais foram:

- Z = 382 cm – ângulo SE do quarto NE
- Z = 386 cm – ângulo SO do quarto NE
- Z = 398 cm – ângulo NE do quarto SE
- Z = 401 cm – ângulo SE do quarto SE
- Z = 405 cm – ângulo NO do quarto SE
- Z = 406 cm – ângulo SO do quarto SE

Foram registrados:

Nível 70 – 80
- NP- 2521 – arqueofauna
- NP- 2519 – conjunto de ossos (3 fragmentos) – y= 48 cm – x= 33 cm – z= 407 cm
- NP- 2520 – ponta óssea – na peneira – z= 70 – 80




FOTO-Atingindo a camada de granito.

A camada de granito foi atingida no final do dia, acusando a profundidade final de Z = 419 cm, no quarto SE da D-34.

2.2.7- Sétimo dia – 23/09/2006.

Eu e Flávia Urzua fizemos o perfil completo do quarto SE da D-34, no sentido sul, oeste, norte e leste. Cinco camadas estratigráficas foram encontradas, sendo, de cima para baixo: entulho; terra preta; concheiro; argila e solo granítico. Não encontramos paleopraia. Acreditamos que ela não atinja a periferia do Sambaqui.
Somente para registro, Juliana e eu acabamos a quadra E-35 do J. P., atingindo o nível de Z= 384.
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Eduardo Melander Filho
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2006


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