terça-feira, 20 de outubro de 2009

A QUESTÃO DO PATRIMÔNIO

Capela de São Sebastião na ilha do Bororé em São Paulo-SP

Eduardo Melander Filho


A temática da preservação do patrimônio nacional, segundo nos indica Maria Cecília Londres Fonseca em seu livro “O patrimônio em processo – Trajetória da política federal de preservação no Brasil”, foi objeto de discussão, a partir de 1920, por parte de intelectuais que denunciaram o abandono de cidades históricas, que eram verdadeiro tesouro da nação. Os intelectuais modernistas adotaram um conceito de patrimônio a partir de idéias sobre artes, história, tradição e nação e foram os mesmos que assumiram o Sphan em 1936.
O modernismo foi um movimento que, dentre outros aspectos, nasceu sobre a crítica ao passadismo e a linguagem acadêmica de então, mas era constituído de diversas correntes estéticas e ideológicas.
Durante os anos 1920 houve uma baixa atuação política dos modernistas, que preferiram à área cultural. No final da década de 1920 e década de 1930 muitos se voltaram para a política militando no Partido Democrático (PD), que reuniu Paulo Prado, Paulo Duarte, Prudente de Morais Neto, Rubem Borba de Morais, Sérgio Milliet, Sérgio Buarque de Holanda, Mário de Andrade e outros.
Havia também os conservadores identificados com o grupo católico de Jacson de Figueiredo, editor da “Revista Ordem”, a quem se juntou Amoroso Lima.
Outros grupos conservadores voltados à militância política eram o “Verde Amarelo” de Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo, Cândido Mota Filho e Plínio Salgado e o “Anta”, de Plínio Salgado. Eram grupos anti-revolucionários, contra ideologias de esquerda. Defendiam a ordem e a restauração dos valores espirituais, tais como: o culto à pátria.
Em 1922, o movimento modernista se apresentou como anti-burguês, mas recebeu apoio e dinheiro da aristocracia cafeeira de São Paulo.
No ano de 1926, um grupo de escritores do nordeste, encabeçados por Gilberto Freire, lançou o “Manifesto Regionalista”, evocando os valores da cultura popular. Em Minas Gerais, grupos que giravam em torno das revistas “A Revista” e “Verde” não assumiram a perspectiva esboçada no localismo nordestino.
O mais interessante é que Mário de Andrade era um elemento único, pois não se encaixava em nenhum desses grupos.
Mário de Andrade foi professor do Conservatório de Música de São Paulo. Foi poeta, romancista, contista, cronista e etnógrafo. Assumiu na década de 1930 a direção do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, sob o governo de Armando Sales de Oliveira, membro do Partido Democrático.
A questão da identidade nacional era uma das preocupações centrais dos modernistas, que tinham uma visão crítica em relação ao “Brasil europeizado” e valorizavam o primitivo em nossa cultura. No entanto, achavam que esta identidade ainda estava por se construir. Não é a toa que no prefácio de “Macunaíma” aparece a frase: “não é tempo de se afirmar alguma coisa”, numa alusão de que a elaboração de uma versão de identidade nacional seria tarefa para o futuro.
Na arquitetura, o modernismo se valia do contato com a vanguarda européia de Lê Corbusier, paradoxalmente, contra o gosto burguês baseado no Ecletismo da “École das Beaux-Arts” francesa.
Os movimentos da década de 1920, tanto de intelectuais quanto políticos, tinham em comum a crítica aos modelos culturais e políticos da Velha República. Todos, apesar de heterogêneos, mobilizaram a opinião pública sob a égide da mudança. No entanto, a participação dos intelectuais modernistas na administração pública só se deu após a revolução de 1930.
Com a instituição do Estado Novo, houve um projeto de reforma administrativa, que se deu de fato com o objetivo de apresentar o Estado como legítimo representante da nação, nação essa entendida agora como “indivíduo coletivo” e não mais como “coleção de indivíduos”, segundo a definição liberal. O regime abriu espaços de participação aos intelectuais, muito embora tenha instalado a censura popular às massas.
Além da participação dos ideólogos do regime como: Francisco Campos, Azevedo Amaral, Oliveira Viana, Almir de Andrade e outros, houve a participação também daqueles que demonstravam certa reserva ao governo estabelecido.
Para a mobilização das massas foram criados símbolos especialmente para invocar a pátria, tais como: bandeira; hinos; efígie de Vargas; etc. No mesmo sentido, houve a nacionalização do ensino fundamental objetivando a criação de uma cultura nacional homogênea. O que preponderou, no entanto, não foi a busca de raízes populares que Mário de Andrade queria, mas sim a tentativa de fazer do catolicismo tradicional, do culto aos símbolos e líderes da pátria, a base mítica do Estado.
Quando Capanema assumiu o Ministério de Educação e Saúde, introduziu na instituição uma ampla reforma. Foram criados: o Instituto Nacional do Livro; o Serviço Nacional de Teatro; o Instituto Nacional de Cinema Educativo; o Serviço de Radiodifusão Educativa e o SPHAN, já com Rodrigo de Melo Franco de Andrade em sua direção. Também foram criados o Conselho Nacional de Cultura e o Conselho Consultivo do SPHAN.
Houve a criação, no período, de cursos superiores de Ciências Sociais. Primeiramente, a Escola Paulista de Sociologia e Política, em 1933. Depois, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. E, em 1935, a Universidade do Distrito Federal.
Nos anos 1930, a arquitetura moderna foi introduzida no Brasil. Arquitetos com ligações modernistas, tais como: Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Afonso Reidy, Marcelo e Milton Roberto, Atílio Correia Lima e outros, receberam apoio de Capanema com a nomeação de Lúcio Costa para a direção da Escola Nacional de Belas Artes em 1930, por influência de Rodrigo Melo de Franco de Andrade.
Capanema admitiu para trabalhar no Ministério de Educação e Saúde e em outras instituições ligadas a ele, intelectuais do modernismo, inclusive nomeando Carlos Drumond de Andrade como chefe de gabinete.
A relação dos modernistas com o Patrimônio Nacional foi definida a partir de duas dimensões: o sentido de ruptura e a eleição de Minas Gerais como tema e os mineiros como personagens nacionais.
Antônio Cândido avalia que em períodos anteriores ao surgimento do modernismo no Brasil, tanto no Império como na Velha República, os escritores eram, de uma maneira ou de outra, dependentes do Estado, pelo fato da maioria da população brasileira ser iletrada, fazendo com que o Estado exercesse uma espécie de mecenato. Daí que, por esta certa dependência, raríssimos foram os casos de escritores que exerceram em seus escritos algum tipo de crítica social ou política, principalmente aos regimes estabelecidos. Os modernistas surgem como uma ruptura desta tradição. Conforme sua frase (Antônio Cândido): “Na verdade, a missão dos modernistas extrapolava o campo estrito da literatura e dos contos. Tratava-se de, ao buscar definir os limites entre a criação literária e a militância política, repensar a função social da arte”.
Paulo Eduardo Jardim de Morais tem uma visão diferente. Os modernistas brasileiros, em contato com as vanguardas modernistas européias, perceberam que a modernização artística, no sentido de se romper radicalmente com o passado, só tinha algum sentido em países que tinham uma tradição já internalizada, o que não era o caso do Brasil, pois aqui a tradição ainda estava por se construir. Daí que a adesão total às teses européias do modernismo descaracterizaria o que o Brasil possui de particular, justamente o nacional. Optaram, por assim dizer, pela construção de uma tradição autêntica brasileira.
Ambos os autores apontam a peculariedade do caso brasileiro. O modernismo no Brasil avançou rumo à criação de uma nova linguagem estética no sentido de rompimento do passado, ao mesmo tempo em que se projetava na construção de uma tradição, no sentido da continuidade. Uma ambivalência renovadora e conservadora.
A relação entre os modernistas e Minas Gerais se estabeleceu a partir de algumas viagens anteriores realizadas por alguns de seus membros. Alceu Amoroso Lima e Rodrigo Melo Franco de Andrade descobriram o barroco mineiro em 1916. Lúcio Costa, quando visitou Diamantina em 1920, ficou admirado com a arquitetura colonial da cidade. Mário de Andrade tomou contato com a arte barroca brasileira da mesma forma, em 1924.
Por diversas razões, mineiros, cariocas e paulistas elegeram Minas Gerais como o berço da civilização brasileira.
Em 1916, Alceu Amoroso Lima publicou na “Revista Brasil” o artigo: “Pelo passado nacional”, relatando a viagem às Minas Gerais. Na mesma revista, Mário de Andrade publicou um artigo com o mesmo teor, em 1920. “A Revista”, periódico mineiro de Carlos Drumont de Andrade e Martins Almeida, abriu espaço editorial para a discussão da questão do patrimônio nacional. Lúcio Costa publicou em “O Jornal”, o artigo “Uma escola viva de Belas Artes”, defendendo a arquitetura colonial brasileira.
Além dos modernistas, Ricardo Severo proferiu uma conferência intitulada “A arte tradicional no Brasil”. Essa conferência foi um marco na tomada de posição dos arquitetos brasileiros em defesa da arquitetura colonial brasileira.
Todas essas atividades são antecedentes à criação do SPHAN. O poder público, frente a essas demandas dos intelectuais, respondeu de diversas formas.
Na década de 1920, foram criadas as Inspetorias Estaduais de Monumentos Históricos de Minas Gerais em 1926, da Bahia em 1927 e em Pernambuco em 1928.
Bruno Lobo foi convidado a elaborar um anteprojeto de lei para a defesa do patrimônio. Tal anteprojeto se tornou inviável, na medida em que atrelou a proteção à desapropriação.
O primeiro órgão federal de proteção efetiva ao patrimônio foi criado no Museu Histórico Nacional, por iniciativa de Gustavo Barroso.
A Inspetoria dos Monumentos Nacionais foi criada em 1934, dentro de uma perspectiva tradicionalista e patriota. A Inspetoria foi extinta com a criação do SPHAN.
A primeira grande iniciativa federal em relação ao patrimônio nacional foi a elevação de Ouro Preto à categoria de monumento nacional.
A partir de 1937, com a instituição do Estado Novo, o tema do patrimônio foi integrado ao projeto de construção nacional.
A entrada do Estado se deu de maneira definitiva em 1936, quando o ministro Capanema se mobilizou para a proteção dos monumentos e artes nacionais. Recorreu, então, a Mário de Andrade para a elaboração de um anteprojeto. O anteprojeto, em sua primeira versão, caracterizou-se por ultrapassar a visão de “bens isolados”, propondo o estabelecimento de uma instituição para cuidar da questão do patrimônio, em geral, de forma abrangente e articulada.
O SPHAN foi instalado experimentalmente em 1936, já sob direção de Rodrigo M. F. de Andrade, com a lei 378 de 13/01/1937. Compunha o órgão: a Divisão de Estudos e Tombamento – DET – ao qual se agregavam a Seção de Arte, Seção de História e o Arquivo Geral, e a Divisão de Conservação e Restauração – DCR. O SPHAN também se enraizava regionalmente através de distritos, possuindo vários Museus regionais que foram criados a partir de 1938. Participaram dessa primeira fase vários elementos, dentre os quais: Mário de Andrade, Rodrigo M. F. de Andrade (de 1936 a 1967), Lúcio Costa, chefe do DET (1937 a 1972), Carlos Drumond de Andrade, Afonso Arinos de Melo Franco, Prudente de Morais, Manuel Bandeira e outros.
O anteprojeto de Mário de Andrade foi preterido. No entanto era bastante avançado. Reunia no mesmo conceito, artes, manifestações eruditas e populares. Afirmava o caráter particular nacional e universal da arte autêntica.
Sua definição de arte se aproxima da concepção antropológica de cultura. Foram propostas oito categorias de arte:

- Arte Arqueológica;
- Arte Ameríndia;
- Arte Popular;
- Arte Histórica;
- Arte Erudita Nacional;
- Arte Erudita estrangeira;
- Artes Aplicadas Nacionais;
- Artes Aplicadas Estrangeiras.

Valorizava, sobretudo, o valor histórico, que se sobrepunha ao artístico, entendendo histórico como obras que, independente de seu valor artístico, constituem documentos para a nossa História Política.
O projeto dava destaque aos Museus Técnicos, que seriam museus pedagógicos, em que a técnica seria apresentada a serviço do conhecimento dos ciclos econômicos do Brasil.
Foram instituídos quatro Livros do Tombo, em que todas as obras tombadas seriam inscritas.
Quanto à participação popular, ela seria limitada à organização dos museus municipais. O alcance da participação popular, segundo o projeto, seria esse. Partia-se da idéia do intelectual como mediador entre os interesses populares e o Estado.
Com o golpe de 1937 e a imposição da ditadura, o que passou definitivamente foi o projeto organizado por Rodrigo J. M. de Andrade, voltado à questão da propriedade e aos meios jurídicos de como lidar com a questão. Surgiu a figura do “tombamento” como fórmula de compromisso entre direito individual, a propriedade e a defesa do interesse público, graças à constituição de 1934 que estabeleceu limites ao direito de propriedade, definindo a função social desta.
A orientação que o SPHAN adquiriu no processo de atribuição de valores a partir de então, inseriu-se na tradição européia de constituição do patrimônio nacional, a partir das categorias de História e Arte. O limite atingido pelo SPHAN foi dentro do conceito de monumento histórico expresso da Carta de Atenas de 1933.
A prioridade de tombamento foi dada ao que havia sobrado da arte colonial brasileira, em decorrência do processo de urbanização, comercialização ilegal de bens móveis por antiquários a colecionadores, além de que, para as populações locais, esses bens eram considerados “velharias”, dignas para “servir de lenha”. O conceito de civilização material adotado foi elaborado por Afonso Arinos de Melo Franco, que considerava que o elemento português predominava sobre o negro e o indígena, que haviam deixado poucos vestígios.
Na arquitetura, grandes quantidades de igrejas foram tombadas, dada a grande quantidade delas, segundo Lúcio Costa.
No conceito de “excepcionalidade”, de acordo com a legislação, predominou o caráter discricionário por parte dos agentes, pois não havia um critério definido. Aliás, os critérios em geral adotados pelo SPHAN eram sustentados pela autoridade dos agentes do órgão e não tanto por estudos e pesquisas, além de ser inacessível ao público em geral. Os próprios funcionários consideravam legítimo o exercício desta autoridade, pautando-se em que cabia ao Estado, na época, o papel de interpretar e de guardião dos valores culturais, em sintonia com os propósitos do Estado Novo.
Quanto à produção de conhecimento através do acervo resultante dos tombamentos, havia uma preocupação de que fosse objetiva, científica, visando subsidiar o trabalho de proteção e divulgar o conhecimento de arte e da história que o Brasil possui.
Os termos do decreto lei 25 de 30/11/1937 foram propositalmente genéricos, definindo o tombamento como um ato administrativo discricionário, fazendo com que as decisões fossem tomadas caso a caso. O estado de conservação do material também era um critério determinante no tombamento.
Embora não seja admitido, na prática, o Livro Arqueológico, Livro Etnográfico e Paisagístico e Livro de História, serviram para abrigar bens que, por estarem destruídos, adulterados e que não se havia interesse estético, não atenderiam critérios do Livro de Belas Artes.
Algumas constatações que podemos tirar sobre as características dos critérios:

1- A constituição do patrimônio no Brasil teve uma preocupação eminentemente estética;
2- O rigor nas inscrições não foi uma preocupação imperativa nas primeiras décadas, mas sim a urgência de proteger;
3- Muitas vezes, a decisão sobre as inscrições partia de quem a propunha ou do inventariante, segundo critérios pessoais.

Na década de 1960, a prioridade de inscrições foi para o Livro de História, mas ainda permaneciam os mesmos critérios em relação ao estudo da obra, dando-se preferência ao Barroco e depois ao estilo Neoclássico. Obras do estilo Eclético, que era a “ovelha negra” da arquitetura brasileira segundo os padrões dos arquitetos modernistas, somente três delas foram tombadas, assim mesmo por seu valor histórico.
Resumindo os critérios:

a- O principal instrumento de escolha era a autoridade dos técnicos;
b- Prevaleceu a apreciação estética baseada nos cânones da arquitetura modernista;
c- O valor histórico dos bens não era objeto de maior atenção;
d- A prioridade era a de assegurar proteção legal para a inscrição no Livro dos Tombos, ficando em segundo plano o critério das inscrições.

A equipe de Rodrigo era constituída, em predominância, por arquitetos, artistas plásticos, pesquisadores, fotógrafos, engenheiros, etc., caracterizando-se por uma grande coesão em torno de um projeto e um grande espírito de equipe. Havia o predomínio de arquitetos, juntando-se a eles, depois de duas décadas, museólogos e só recentemente, historiadores e cientistas sociais.
Tem-se a impressão que a instituição se unia contra os inimigos externos, que eram os proprietários de bens a serem tombados, intelectuais preteridos pela instituição, membros da igreja católica e a própria massa, que Rodrigo julgava como ainda não consciente do valor do patrimônio.
Daniel Pecant resumiu bem as relações entre o Estado e os intelectuais do novo regime no Estado Novo em duas observações:

- Recorria aos intelectuais para alcançar a unidade orgânica da nação, pois era responsável pela identidade cultural brasileira;
- Não conhecia outra expressão da opinião pública que não fosse dos intelectuais.

Tanto os intelectuais como o Estado Novo entendiam o povo como massa, sem canais próprios de expressão. No entanto, Mário de Andrade e os modernistas valorizavam positivamente o povo através de suas manifestações culturais, reconhecendo a criatividade e a presença viva e dinâmica de nossas raízes culturais.
Havia um acordo tácito que permitia a autonomia que o SPHAN possuía dentro do MES: o do não envolvimento dos intelectuais em outras esferas do governo, inclusive censura e propaganda. Havia um claro interesse do governo Vargas em cooptar intelectuais de prestígio para dentro do aparelho de Estado.
Silvano Santiago considera a trajetória de Mário de Andrade um exemplo de ambivalência dos modernistas da década de 1920 em relação à política. Ele faz uma citação de uma frase de Mário de Andrade que diz: “Os novos ainda buscam a ‘verdade’, filhos que são do ‘falido espírito burguês liberal’. Já os novíssimos, filhos das ‘diversas ditaduras socialistas ou fingidamente socialistas de agora’, já não se interessam (clercs traidores que são) pela busca da verdade, mas buscam uma ‘lei’”, numa alusão clara a Graciliano Ramos e Jorge Amado, que, pelas suas posições antifascistas e de esquerda, foram perseguidos pelo Estado Novo.
A aposentadoria de Rodrigo M. F. de Andrade ocorreu em 1967. Renato Soleiro, arquiteto, substituiu-o, dando fim ao período compreendido como “fase heróica” da instituição.
Sérgio Micele afirma em seu texto “SPHAN: refrigério da cultura oficial”, que o anteprojeto de Mário de Andrade não era politicamente viável na época de sua elaboração. No entanto, um confronto entre esta proposta e os rumos que o SPHAN assumiu na época, não contribui na solução dos impasses que hoje se apresentam.
Mário de Andrade representava o cosmopolitismo de uma sociedade complexa, apoiada no trinômio imigração-urbanização-industrialização e contrastava com projeto de vida das elites mineiras. A generosidade etnográfica de sua proposta entrou em contraste com a eleição do barroco como base da política preservacionista.
A criação do SPHAN representou um passo decisivo de um regime que se dedicava a construir uma identidade nacional. Intelectuais modernistas atuaram em consonância com este projeto, elegendo o barroco como “ponto de partida” para a construção da memória nacional.
Pela lista dos imóveis e monumentos tombados pelo SPHAN, percebe-se que ali estão representados “os espécimes característicos de todas as frações da classe dirigente brasileira, nas expressões públicas e privadas, leiga e eclesiástica, rural e urbana, e um extremo esquecimento dos grupos populares, das populações negras e povos indígenas”. Houve uma preferência clara aos bens de “pedra e cal” em detrimento de outras, pelo fato de os arquitetos serem os primeiros mentores da política preservacionista, indicando uma “queda” pelo monumentalismo.
A tradição preservacionista no Brasil nunca conseguiu superar a doutrina da “reintegração artística”, que nada mais é senão purificar o prédio a ser restaurado, eliminando quaisquer acréscimos posteriores à construção original.
Uma “mistura de proteção política e reduzido impacto intelectual, foi uma das sementes do passadismo culturalista, que passou a nortear as políticas preservacionistas”. Por conta da formação dos intelectuais da geração modernista que foi incorporada ao SPHAN, ele acabou se constituindo num organismo dedicado à salvação do abandono de exemplares arquitetônicos significativos esteticamente para a histórica das formas e estilos da classe dirigente. Em conseqüência, a questão do “retorno social” dos recursos públicos aplicados nunca foi resolvida.
Havia na época uma definição operacional restritiva aos acessos da cultura material das elites, o que deu margem ao fortalecimento de instituições concorrentes no trabalho de preservação dos patrimônios preteridos. O SPHAN, dentro deste contexto, transformou-se num “refrigério da cultura oficial”, autodefinindo-se como um organismo “técnico” e imune ao “clientelismo de balcão”, cujas atividades só poderiam ser avaliadas por especialistas. Outras agências não conseguiram operar da mesma maneira, pois possuíam outro tipo de “clientela”. O SPHAN só operava com duas: os arquitetos (que tinham representação) e os empreiteiros.
O SPHAN foi bem sucedido no duplo empenho de especialização e isolamento institucional.
O autor faz a colocação de que os novos interlocutores das políticas de preservação tendem a propor a democratização do acervo e dos debates à constituição do acervo.
Na França, a política de patrimônio foi dilatando suas fronteiras, abarcando quaisquer modalidades de expressão cultural. O conceito de patrimônio foi se antropolizando, mostrando-se sensível a qualquer experiência social. Essa política seria impossível se não contasse com respaldo social e mesmo eleitoral, no sentido de se garantir verbas públicas.
Deve-se lembrar que há um peso importante da cultura no contexto da política externa francesa. Há também um retorno dos investimentos no campo da preservação, através dos incentivos a setores da indústria cultural e ramos do artesanato de luxo.
A nova política de patrimônio não se guiou por critérios estéticos ou estilísticos, mas sim por critérios de representatividade etnográfica importados das ciências sociais.
Houve também a exigência da utilização socialmente produtiva dos bens preservados por parte dos beneficiários, com incentivos vários.
Nos Estados Unidos houve uma separação entre conservação e preservação, constituindo-se o primeiro pelo trabalho desenvolvido pelos museus, arquivos, etc., e o segundo, pelo patrimônio arquitetônico e ambiental inserido nos objetivos das políticas de planejamento urbano. Todo o trabalho de preservação se encontra nas mãos de associações e empreendimentos particulares, a maioria com fins lucrativos. Não há legislação protecionista.
Tanto na França quanto nos Estados Unidos, as políticas e os responsáveis (públicos e privados) pela preservação, tornaram-se acessíveis às demandas dos movimentos sociais, com critérios etnológicos e sociológicos, em detrimento do gosto burguês de origem européia.
O movimento preservacionista dos países desenvolvidos acabou se envolvendo com movimentos de preservação do meio urbano e meio ambiente, pela afirmação dos direitos das minorias à diferença.
No Brasil isso não ocorre. Aqui, a reorientação política para os interesses dos grupos populares, pode redundar numa “folclorização sofisticada”.
Há motivo de preocupação com a proposta de tombamento do próprio SPHAN na busca de justificar o “status quo” da instituição, eternizando um organismo “fóssil”.
Todos os problemas do Brasil se referem à questão da democratização, segundo o autor, que propõe a democratização do acervo, meios de acesso a ele, espaços de debate sobre ele e que se assegure a representatividade da comunidade afeita ao acervo.
Antes de tudo, são necessárias algumas considerações. O texto de Maria Cecília Londres Fonseca constituiu-se com a proposta de discutir a “fase heróica” do SPHAN, de sua fundação até a data de aposentadoria de Rodrigo M. F. de Andrade, enquanto que o texto de Sérgio Micele parte já para propostas e estudos de épocas posteriores também. Ambos os textos são peculiares, apresentando divergências pontuais mínimas, sendo a mais importante a que se refere ao anteprojeto de Mário de Andrade. Maria Cecília defende a tese de viabilidade do projeto, que, se fosse implantado à época, seria de um avanço considerável. Chega mesmo a sugerir que toda a trajetória do SPHAN foi devida ao preterimento daquela proposta. Sérgio Micele afirma que não, pois, segundo ele, o projeto era inviável para a época e que, portanto, essa questão está fora da ordem do dia quando se trata de discutir os rumos da preservação do patrimônio nacional nos dias de hoje.
Mas o que mais nos assusta são as convergências: ambos são taxativos em defender a proposta de Mário de Andrade e mesmo a postura do escritor em sua época, relacionada à ditadura getulista de direita. Retomaremos mais adiante com esta questão. Antes, vamos apresentar duas outras, que também são relevantes.
A primeira é a questão da “democratização” dos assuntos referentes ao patrimônio histórico cultural.
Tem-se defendido a “democratização” como se ela fosse a panacéia para todos os males. Se a tradição preservacionista no Brasil é ligada ao autoritarismo, ao elitismo intelectual e à dissociação com as massas, dá-lhe democratização que as coisas ficarão automaticamente resolvidas, como se a própria evocação à idéia já se constituísse num direcionamento infalível. Nesse raciocínio metafísico, a idéia adquire vida própria, instando o participante com seu sopro divino.
No Brasil, a idéia de democratizar sempre veio acompanhada, salvo exemplos concretos resultantes de atividades militantes de grupos de esquerda marxistas, da idéia de co-gestão, por um lado, em que os grupos ou comunidades adquirem a autonomia da operacionalização, mas não da decisão final sobre o que elaborar e das regras de funcionamento, e da idéia da auto-sustentação, por outro, jogando às populações tarefas que tradicionalmente são tarefas do Estado, que fica desobrigado, a partir daí, de prestar outra ajuda que não seja a de “conselhos” ou “receitas” através de “cartilhas”.
Obviamente que esta idéia nunca interessou ao capitalismo há tempos atrás, quando as únicas organizações populares progressistas das comunidades que existiam eram inspiradas no conceito histórico de luta de classes, conceito agregador. Mas hoje interessa, pois reforça as comunidades organizadas segundo o conceito antropológico de minoria, conceito desagregador.
Contudo, a simples possibilidade de democratização é um grande avanço. Avanço esse que deve ser garantido com reflexões sérias sobre o assunto. Deve-se rediscutir o papel do Estado, que no Brasil ainda detém o monopólio do “patrimônio”, sem, no entanto, desobrigá-lo de intervenção, principalmente no fornecimento de suporte financeiro e institucional.
Questão central é a de se discutir sim, critérios mais ou menos gerais, que, se não acadêmicos, ideológicos no sentido de fornecer subsídios para que as comunidades garantam a discussão local dos limites e abrangências em que a ação de preservação do patrimônio deve transitar.
Afirmamos isto porque se essa discussão não se estabelecer, democracia alguma vai livrar as comunidades de adotarem, por falta de opção cultural, aos mesmos critérios já estabelecidos baseados numa estética burguesa, pré-definidos por uma elite comprometida com as classes dominantes, ou aos critérios ditados pela indústria cultural, com formulações baseadas em premissas do pós-modernismo imperialista e dominador. E é aqui que entra a segunda questão.
Durante a “fase heróica” do IPHAN (antigo SPHAN) foram os arquitetos que prevaleceram, dando inclusive o tom da definição de patrimônio histórico e artístico nacional, baseado fundamentalmente em padrões estéticos das classes dominantes, assim como a “História” que se preservou foi através dos bens e monumentos de exaltação dessa mesma elite dirigente.
Não é preciso dizer que hoje são os cientistas sociais que detém o monopólio conceptual que define o patrimônio a ser preservado, inclusive o histórico, que passa a ser algo que constituí alguma tradição cultural mais ou menos perene dentro de uma comunidade.
Podemos dizer com certeza que, desde a criação do IPHAN (SPHAN), quem definiu a formulação do conceito de “historicidade” foram os arquitetos e, depois, os antropólogos.
Mas, o que é “histórico”, sob o ponto de vista do historiador? Não é pelo fato de a participação de historiadores ser pequena dentro das instituições dedicadas à preservação, que se justifica a ausência deles na formulação do conceito que, por sinal, é um conceito que deveria ser formulado necessariamente por... historiadores. No entanto tal não sucede, abrindo espaço para definições fundamentadas no dogmatismo estético ou no relativismo cultural.
É essa a tarefa que, no nosso modo de pensar, cabe aos historiadores na questão da preservação do patrimônio histórico e cultural. Se os historiadores não tomarem para si essa tarefa outros o farão, ou pior, cada qual definirá da maneira que lhe convier ou de acordo com suas necessidades de todos os tipos, abrindo espaço para que setores mais poderosos e melhores aparelhados em termos estruturais imponham sua “visão de mundo”, de acordo com interesses espúrios e de toda espécie.
Passamos então agora à questão relativa ao Mário de Andrade.
Ambos os autores defendem o anteprojeto de Mário de Andrade como avançado para a época. Ambos também realçam que, Mário de Andrade, era uma figura ímpar dentro do modernismo, que não participou de nenhuma agremiação política na época. Então vamos a algumas considerações.
Primeiramente, em relação ao movimento modernista, já durante a Semana de Arte Moderna em 1922, revelou-se antiliberal, propondo uma alternativa estética aos padrões europeus adotados nas artes e arquitetura “eclética”. Alguns intelectuais de esquerda se agregaram ao movimento, mas, no Brasil, aqueles que enveredaram nas atividades políticas eram eminentemente de direita. A entrada desses intelectuais no regime Vargas se deu com motivações, conforme veremos.
Em segundo lugar, há a tese de que Mário era uma figura única dentro do movimento, que não dá para definir em relação aos grupos de expressão. É preciso entender que Mario de Andrade era funcionário de carreira e o funcionalismo da época trabalhava de acordo com o conceito de que o funcionalismo do Estado deveria ser neutro politicamente e extremamente eficiente. Aliás, foi dentro deste conceito que o SPHAN foi constituído. Claro que ele tinha opiniões políticas e quando ele as manifestou foi à direita (vide comentário contra os socialistas, Graciliano Ramos e Jorge Amado). Daí sua atitude meio “em cima do muro”, atitude essa refletida também em todo o movimento modernista, que não optaram por uma “verdade”, mas a estavam procurando.
Em terceiro, no texto de Micele, ele descreve que Mário mais representava o cosmopolitismo de São Paulo e que seu anteprojeto refletia isso. No entanto Mário viajou a Minas Gerais em 1924, adotando a tese da mineiridade. E referiu-se com desdém quando comentou sobre o que sobrou de arquitetura em São Paulo. Mario de Andrade era “mineiro”.
Em quarto lugar, o anteprojeto, quando se referiu ao popular, não tinha nada de “avançado”, pois se dirigia ao folclore, às festas populares, ao pitoresco, ao exótico, tão bem ao gosto dos modernistas franceses, quase todas inseridas, de uma maneira ou de outra, dentro de contextos religiosos católicos, fosse uma expressão de minoria ou não. O papel relegado às massas na participação de projetos de preservação dá bem o tom da proposta excludente e elitista de Mário.
A quinta questão se refere à tese da ambivalência, que ao mesmo tempo era renovadora e conservadora, tese essa que aparece cada vez que se quer minimizar o regime de Vargas ou até mesmo justificar a participação dos intelectuais modernistas na direção do regime.
Tanto o fascismo italiano como o nazismo eram também ambivalentes. Baseavam-se na renovação moderna representada pelas ciências e pelo avanço tecnológico, num sentido e em direção ao progresso. Mas também eram conservadores no sentido de defender uma cultura ligada a um mito fundador: o Império Romano para os italianos e o Primeiro Reich para os alemães. Os modernistas brasileiros também eram pela renovação moderna, mas também procuravam uma cultura baseada numa “fundação”, que encontraram na arte mineira dos primeiros séculos. Os modernistas brasileiros eram tão ambivalentes quanto os fascistas e os nazistas.
Por último, para explicar a participação dos intelectuais modernistas no governo Vargas e Estado Novo, recorremos a Gramsci, quando escreveu sobre o papel do intelectual.
Gramsci, do Partido Comunista italiano, foi preso em 1925 pelos fascistas e condenado a vinte anos de prisão em 1928. Morreu no cárcere em 1937.
Durante o período de prisão, escreveu “Cadernos do Cárcere”, publicados de 1948 a 1951.
Véndrine nos mostra que o presidente do tribunal que condenou Gramsci disse que “é preciso impedir esse cérebro de funcionar durante vinte anos”.
Os “Quaderni” de Gramsci possuem duas questões centrais que são o papel das ideologias e o papel do intelectual na elaboração da ideologia. Preocupou-se em responder o porquê de as classes dirigentes arrastarem toda a sociedade, servindo-se de intelectuais.
Desenvolveu uma reflexão onde percebe que todos os homens possuem uma certa cultura e capacidades técnicas, por isso são intelectuais. Mas nem todos têm funções intelectuais na sociedade. Portanto é por sua função num determinado sistema que se define o intelectual do não intelectual. Em seguida faz uma distinção entre os intelectuais orgânicos, aqueles que são criados pelo sistema para garantir sua coesão e ideologia, e os intelectuais tradicionais, remanescentes das antigas camadas sociais. Ambos desempenham o papel de “consolidar” a ideologia da classe dominante, que será absorvida pelas demais classes. Os intelectuais participam do sistema em diversos graus e por isso nenhum deles é inocente no regime capitalista. Conseqüentemente, toda a revolução deve agregá-los por cooptação ou destruí-los inexoravelmente, dependendo das circunstâncias.
Gramsci se recusou a tratar todos os intelectuais como burgueses, pois eles constituem várias camadas que servirão, ou a classe dominante como intelectual orgânico, ou à classe que sobe como uma nova elite de militantes.
Podemos dizer que, longe de ser comunista, muito pelo contrário, Vargas seguiu (pela direita) o conselho de Gramsci no cooptação dos intelectuais. Podemos dizer também, que, como diz Gramsci, nenhum intelectual é inocente. Nesse sentido, Mario de Andrade não o era e seu comprometimento com o regime não foi apenas circunstancial, como muitos gostam de afirmar.
Existe uma áurea de “mito” rondando Mário de Andrade. É necessária uma desmistificação a fim de colocá-lo no lugar que lhe cabe na História.



BIBLIOGRAFIA


ARANTES, Antonio Augusto. Documentos históricos, documentos de cultura. Texto.

FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo – Trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro. Editora UFRJ/MinC-IPHAN. 2005.

MICELI, Sergio. SPHAN: refrigério da cultura oficial. Texto.

VÉDRINE, Hélène. As filosofias da História – Decadência ou crise. Rio de Janeiro, Zahar, 1997.

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