sexta-feira, 14 de novembro de 2008

HAROLD WALTER: UM INGLÊS DO SÉCULO XIX NA LAGOA SANTA DO XX (PARTE 1)

O Homem de Lagoa Santa


Harold Walter: Um inglês do século XIX na Lagoa Santa do XX (Parte 1)


Eduardo Melander Filho [1] / Rodrigo Medina Zagni [2]



Introdução

A biografia de Harold Walter se confunde, sob vários aspectos, com a própria história da Arqueologia Brasileira especialmente no histórico de um de seus mais importantes e significativos sítios: Lagoa Santa, no Estado de Minas Gerais, local onde mais resultados obteve o arqueólogo membro da Academia de Ciências e do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Vice-Cônsul da Inglaterra em Belo Horizonte.
Nosso objetivo consiste em demonstrar, por meio das pesquisas, o empreendimento de Harold Walter, os resultados obtidos, as mudanças pelas quais passava a arqueologia não só no contexto brasileiro, mas primordialmente europeu no campo teórico e metodológico diante das significativas descobertas e inovações tecnológicas que redefiniram a própria ciência arqueológica.
Essas mudanças são perceptíveis nos métodos de pesquisa Harold Walter de forma sintomática. O arqueólogo inglês demonstrou em vários momentos resistências significativas às novidades, arraigado em suas convicções e concepções teóricas fortemente ligadas ao evolucionismo darwinista, o que se pode verificar na comunicação dos resultados de suas escavações transcritas no tratado “Arqueologia da Região de Lagoa Santa, Minas Gerais (Índios pré-colombianos dos abrigos-rochedos)”, escrito pelo arqueólogo em 1958 e que constitui nossa fonte de estudo[3].
Segundo o próprio autor trata-se de

. . . um relatório baseado nas explorações feitas durante muitos anos e inclui uma descrição dos exemplares mais importantes, que serão de bastante utilidade, no futuro, para estudos comparativos e cronológicos.[4]

Procuraremos, na descrição de sua metodologia para pesquisa de campo e no exercício interpretativo dos artefatos que escavou, identificar as mudanças pelas quais passava a arqueologia no âmbito teórico-metodológico. Verificaremos ainda, como essas mudanças se relacionaram com as concepções, como dissemos, vigentes desde o final do século XIX na Europa, onde se deu o período de formação de Walter e que aparecem desde as fases de escavação até a análise final dos objetos escavados em campo.
Entender Harold Walter e seu papel em um contexto mais amplo é, portanto, entender um período chave na conformação de uma Arqueologia Brasileira.

Dos primórdios de uma arqueologia brasileira à Peter Lund:

Harold Walter é herdeiro direto da tradição européia em arqueologia que foi empreendida no Novo Mundo, desde os seus primórdios com a publicação das primeiras obras que faziam alusão às casas subterrâneas dos Guaianases, por Gabriel Soares de Souza, machados semilunares dos Tapuias estudados por Yves d’ Evreux e propulsores reproduzidos nas pinturas de Albert Eckout.
O interesse de uma arqueologia européia pelo Brasil se deu, inicialmente, em função da atividade de coleta de objetos exóticos para os gabinetes reais de curiosidades. Nesse contexto, o século XIX é fundamental para a conformação de uma atividade arqueológica no Brasil com a vinda da corte portuguesa, o que transformava a necessidade de conhecer as terras brasileiras em uma política oficial de Estado.
No mesmo período foram patrocinadas expedições de naturalistas europeus como Agostín de Saint-Hilaire, Martius, Spix e de Peter Lund. Do trabalho deste último, em Lagoa Santa, Harold Walter seria um fiel continuador[5].
O dinamarquês visitou Lagoa Santa pela primeira vez em 1834, retornando e fixando-se ali definitivamente em 1835, com suas pesquisas subvencionadas pela Sociedade de Ciências de Copenhague. Admitido no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no ano de 1839, doou à instituição um livro de Rafn sobre a descoberta da América do Norte pelos Vikings no século X, propondo que se verificasse uma suposta presença escandinava no Brasil do passado por meio de estudos dos vestígios mortais deixados por seus homens primitivos.[6]
Lund, em 21 de abril de 1843, descobriu 30 ossadas humanas misturadas a fósseis de animais, fato que definiria o seu destino futuro enquanto pesquisador. Suas descobertas apontavam para a evolução das espécies, no entanto, como luterano convicto, adotou a teoria do Catastrofismo - a soma do Criacionismo com o Atualismo Geológico -, afirmando que as diferenças entre fósseis de diversas camadas estratigráficas eram prova de sucessivas “criações”[7].
Lund era também fixista, pois não via ligação entre os fósseis e as espécies atuais, além de acreditar profundamente no homem pré-diluviano. Quando descobriu ossadas de seres humanos iguais a nós juntamente com fósseis de animais extintos em uma mesma camada estratigráfica, indicando que ambos viveram em uma mesma época, não pôde levar a termo o produto de seus achados. Entre a fé e as evidências, Lund optou por sua fé[8].
O cientista morreu em 25 de maio de 1880 depois de ter explorado mais de 800 cavernas e coletando por volta de 12 mil fósseis, escrevendo assim, a história do Pleistoceno brasileiro.
Lund identificou cerca de 115 mamíferos, incluindo cavalos, dentes de sabre, cachorros das cavernas, capivaras, tatus gigantes e duas espécies de preguiças terrícolas, as quais foram confirmadas como espécies um século e meio depois. Descobriu, ainda em Lagoa Santa, cerca de 70 ossadas humanas que estão hoje, em sua maioria, junto da maior parte das outras coleções, em Copenhague, em virtude de a Monarquia Dinamarquesa ter provido o financiamento de grande parte das pesquisas.
Foram realizados estudos dessas coleções nos Séculos XIX e XX por Herluf Winge, paleontólogo de Copenhague.
Lund é considerado o pai da Paleontologia brasileira e reconhecido como pai da Arqueologia e da Espeleologia. Foi também um dos primeiros a assinalar a presença de sambaquis e inscrições rupestres no Brasil[9].
Segundo Madu Gaspar, as pesquisas de Lund coincidiram com a efervescência dos debates sobre a antiguidade do Homem na Europa e acabaram por transportar a querela para o Brasil, impondo à arqueologia que aqui se fazia, a questão da antiguidade da própria ocupação das Américas. Lagoa Santa, nesse sentido, foi um ponto de referência pela comprovada coexistência de seus antigos habitantes e a fauna extinta.[10]
O início da arqueologia brasileira - segundo a Profa. Dra. Marisa Coutinho datado na segunda metade do século XIX[11] -, onde se insere Peter Lund e suas pesquisas em Lagoa Santa, é marcado inicialmente pelo interesse de D. Pedro II pela Antropologia. Esse interesse foi determinante para a ampliação do acervo do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro com a vinda de coleções européias e africanas, contendo itens de algumas das primeiras escavações de sítios pré-históricos do mundo.
Após um período intermediário que assistiu à primeira publicação de um manual de arqueologia brasileira por Angione Costas, em 1934, iniciou-se um período formativo no âmbito da pesquisa moderna, que se estendeu de 1950 a 1965[12] e teve nos chamados arqueólogos “amadores” seus primeiros colaboradores.
Dentre os “amadores” estavam: Guilherme Tiburtius, imigrante alemão cujo acervo formou a Coleção do Museu Arqueológico de Sambaquia em Joinville; Padre Rambo, no Rio Grande do Sul; J. A. Pereira Júnior e, finalmente, Harold Walter, cônsul inglês em Belo Horizonte, que deu continuidade às escavações de Lund em Lagoa Santa.

Os sítios de Lagoa Santa:

O sítio arqueológico da Lapa Vermelha IV (Lagoa Santa/ MG) foi palco de importantíssimos achados, como carvões vegetais que foram associados a níveis estratigráficos, onde ossos e coprólitos de uma preguiça gigante foram escavados e datados em 9.580 AP.
Além de importantíssimo sítio paleontológico, as escavações em Lagoa Santa possibilitaram importantes estudos feitos a partir de crânios humanos, que sugerem as primeiras populações na América como portadoras de características negróides ou australóides e não mongolóides conforme previa o modelo tradicional[13], segundo o Prof. Dr. Walter Alves Neves[14].
O mais importante achado no sítio da Lapa Vermelha IV foi o chamado crânio de Luzia, descoberto pela Missão Franco Brasileira em 1975, comandada por Annette Laming Emperaire, juntamente com André Prous.
O sítio abrange toda uma cadeia de cavernas de calcário que se estende desde os limites do município de Lagoa Santa até às cidades vizinhas de Pedro Leopoldo, Matosinhos e Sete Lagoas.
Os antigos acampamentos humanos, identificados e escavados, compreendiam os sítios de Campo Alegre, Carancas (Nova Granja), Lapa Vermelha (Pedro Leopoldo) e Lapa do Galinheiro (Confins).
Os sítios de Lagoa Santa foram pesquisados também por Wesley Hurt e o casal Clifford Evans e Betty Meggers. Segundo nos informa Cristina Barreto, tratavam-se dos “. . . arqueólogos americanos mais influentes no Brasil . . .”[15]
Com Hurt trabalharam ainda, em Lagoa Santa, os arqueólogos brasileiros Castro Faria, do Museu Nacional e Oldemar Blasi, do Museu Paraense, e desse trabalho tem-se as primeiras datações radiocarbônicas de Lagoa Santa, que atestam antiguidade de 10.000 AP.


Harold Walter e seu tempo:

Até pelo menos 1940 a Arqueologia era tida como uma atividade de “caça a tesouros”, financiada por museus que exibiam seus resultados. É, portanto, fruto da curiosidade humana por suas ações e resultados, que se estabelece paralelamente a um orgulho em exibir objetos desconhecidos, únicos, o que sempre exerceu fascínio no Homem.
Somente a partir da década de 1960 a Arqueologia passou a operar com função de “espelho e reflexo” do ser humano: a caça aos tesouros teve como finalidade fazer com que os objetos encontrados demonstrassem reflexivamente a sociedade que os produziu. Havia ainda grupos mais avançados, desenhando em claras linhas uma etnologia que se afirmaria carreada pela antropologia, pressupondo objetos não reflexivos mas demonstrativos de como a sociedade que os produziu era simbolizada, criando assim uma arqueologia simbólica.
A década de 1960 foi também palco da revolucionária New Archaeology, a qual rompeu com os paradigmas tradicionais que ameaçavam a arqueologia de consolidar-se como uma ciência meramente catalográfrica.
Para Madu Gaspar,

. . . as pesquisas da arqueologia consideradas modernas começaram na década de 50, quando foram obtidas as primeiras datações radiocarbônicas e feitas as primeiras análises sistemáticas de sítios.[16]

Assistindo às mudanças desses paradigmas e à uma revolução nas técnicas, onde se inseria Harold Walter?
Ele é fruto da antiga corrente que via na atividade arqueológica ainda a aventura da caça aos tesouros antigos e nas escavações a busca pelas verdades ocultas que desvendariam a saga humana na Terra, descortinando o modus vivendi de nossos antepassados.
A própria biografia de Walter demonstra que a Arqueologia passava a ser uma “aventura para intelectuais”, uma espécie de continuidade das muitas de suas peripécias juvenis, como quando fugiu da Inglaterra para se alistar ao exército Belga para lutar a Primeira Guerra Mundial, uma vez que em seu país natal não tinha idade suficiente para servir ao exército real. Da aventura, seu neto Alexander Walter nos diz ter guardado o capacete que o avô usou em combate, com a marca de um tiro que o alvejou de raspão e por pouco não lhe tirou a vida. Guarda ainda uma baioneta alemã, lembrando que o avô contava tê-la tomado de um inimigo após vencê-lo em um combate corpo a corpo, travado até à morte.
Na guerra, já como sargento, Walter foi condecorado. Para ser operado de uma hérnia teve que se ausentar do combate, e ao receber alta, podendo voltar ao front, recebeu a notícia de que sua companhia inteira havia sido aniquilada.
As aventuras vividas em sua juventude tinham um significado para ele, parecido com a aventura da pesquisa de campo.
Trata-se da mesma qualidade de atividades que inspirou George Lucas a criar, a partir do vittae do arqueólogo Heinrich Schliemann (1822-1890), o personagem Indiana Jones[17].
Harold Victor Walter nasceu em 23 de julho de 1897 em Liverpool, na Inglaterra.
É filho de mãe pernambucana, Catherine Lockhart Walter, e do inglês Francis Catham Walter, que se mudou para o Brasil em 1887 para trabalhar no Banco Anglo-Brasileiro de Londres, primeiro no Rio de Janeiro, depois em Pernambuco, onde conheceu Catherine.
O jovem Walter chegou ao Brasil no dia 16 de março de 1921, vindo de Liverpool no vapor “Orcoma” e trazendo consigo um contrato para trabalhar em uma firma britânica. A partir de 1926 mudou-se para o Estado de Minas Gerais, seguindo os pais.
O “Cidadão Mineiro Honorável”, título que lhe fora conferido pelo Estado de Minas Gerais, casou-se com Doris Annie Pryor no dia 21 de abril de 1926 e tiveram dois filhos, Cyril Guy Pryor Walter e Derek Walter.
Entrou para o consulado inglês como Vice-Cônsul em 1942, com a Segunda Guerra Mundial em pleno curso.
De 1956 até 1975 foi diretor da “Cultura Inglesa” de Belo Horizonte, atividade que integrou às suas pesquisas, fazendo do espaço o local para a comunicação dos resultados de suas escavações.
Foi condecorado pelo presidente Emílio G. Médici com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, no grau de Oficial, em 28 de abril de 1971, a mais alta condecoração do governo brasileiro já dada a estrangeiros.
Em campo, geralmente, era acompanhado pelos amigos Arnaldo Cthoud e Aníbal Mattos, liderando escavações durante a maior parte de sua vida dedicadas ao estudo da pré-história regional e, a exemplo de Lund, inclinando-se mais às explorações paleontológicas.
Sobre a arqueologia afirmava tratar-se de atividade que empreendia em intervalos irregulares; pensamos que, em decorrência de seus próprios estudos em paleontologia, para esclarecer as relações entre restos de ossos humanos relacionados às evidências de espécimes extintas, como uma espécie de continuação da atividade paleontológica ou, em suas próprias palavras, um “hobby”.

Meu esporte favorito foi o tênis, que pratiquei com regularidade por mais de 30 anos, e meu “hobby” tem sido fazer pesquisa de campo e estudar a pré-história da região de Lagoa Santa . . .[18]

Seu neto, Alexander Walter, se recorda do avô como um arqueólogo nato:

Fui com ele quando era criança em vários lugares como Cerca Grande e outras grutas da região. Vi muitos desenhos arqueológicos nas paredes das cavernas.
Ele era uma pessoa super bem-humorada e era famoso por contar piadas que tinha guardadas num caderninho.
[19]

O estudo sobre os índios pré-colombianos dos abrigos-rochedos:

O objetivo que norteou a maior parte dos estudos e escavações de Walter em Lagoa Santa foi comprovar a contemporaneidade do homem primitivo, que ali habitou, com a fauna extinta do período pleistoceno. Por outro lado, seu interesse inicial pelo sítio foi de origem paleontológica, no qual os abrigos forneceram-lhe uma diversidade enorme de materiais.
O interesse científico pela Antropologia seria despertado em seguida.
Estudou vários abrigos-rochedos de Lagoa Santa, áreas protegidas e cobertas por rochas calcáreas[20] escolhidas pelos índios primitivos como habitação, depósito e cemitério. Parte relevante de suas conclusões foram formuladas a partir de exercícios de associação dos líticos aos restos ósseos humanos ali escavados, tentando chegar a uma espécie de apropriação de uso social dado aos objetos de pedra lascada e algumas vezes polida, para determinar como viviam os índios de Lagoa Santa nos tempos que designava como “pré-históricos”.
A designação demonstra que fazia uso, no Brasil, de cronologias européias.
Estudou sistematicamente 7 abrigos de tipos diversos: Eucalipto, Mãe Rosa, Limeira, Sumidouro, Samambaia, Marciano e caverna de Confins; de onde coletou artefatos a partir dos quais estabeleceu, em conjunto com o estudo de pinturas rupestres, uma cronologia de seqüência cultural do homem primitivo de Lagoa Santa.
As associações feitas entre restos esqueletais e ossadas de animais extintos, possibilitou a Walter, estabelecer uma cronologia onde afirmou que

Os habitantes mais antigos [de Lagoa Santa] são, de fato, os de Confins, Pedro Leopoldo e da Lapa do Sumidouro, pois que a sua associação com os mamíferos extintos não deixa dúvida alguma sobre a sua antigüidade.[21]

Os artefatos escavados:

Outra importante contribuição legada pelo arqueólogo foi a tipologia construída para pontas fabricadas com material ósseo. Identificou quatro tipos principais que divergiam e se agrupavam a partir de suas formas e comprimentos, de acordo com os locais onde foram escavados: tipos de Mãe Rosa; Eucalipto; Sumidouro; e Confins.

Os novos métodos de datação:

Por um lado, Walter estabeleceu suas primeiras cronologias baseando-se nos estudos estratigráficos dos sítios, a partir do arranjo natural das camadas de solo, nas quais sedimentos e outros materiais foram depositados, relacionando objetos líticos, restos cerâmicos, artefatos de osso, restos esqueletais de homens e ossadas de animais (muitos deles extintos) aos perfis em que eram escavados.
Por outro lado, Walter é contemporâneo ao desenvolvimento do método que data matéria orgânica pela mensuração da desintegração do carbono radioativo, o C14, que começava a ser inserido na análise de artefatos arqueológicos com o método corrente já consolidado da estratigrafia e da medição do flúor.
Isso aparece na fonte por nós estudada, onde apontou os benefícios da datação com relativa precisão e as dificuldades em ter acesso a esse tipo de tecnologia:

Disso temos certeza [de que o homem de Lagoa Santa ali viveu há milênios] devido ao teste de data, por meio de carbono radioativo, feito com carvão vegetal encontrado juntamente com o homem de Pedro Leopoldo, e aos testes de flúor no Crânio de Confins.[22]

Como vemos, chegou a fazer uso da técnica do C14, por meio da qual determinou a idade do Homem de Pedro Leopoldo, datando o carvão vegetal colhido em Lagoa Funda, obtendo o resultado de 3000 AP.
Mas ainda assim, para Walter, os novos testes eram

. . . muito dispendiosos e as amostras de material têm de ser enviadas à América do Norte para análise, limitando, assim, os meios pelos quais se poderia provar, sem dúvida alguma, a sua antigüidade.[23]

Concepções teóricas

Fica claro que Walter operava com um modelo monolítico de explicação para a ocupação das Américas. Quando mencionou que

não sabemos quantos milhares de anos ele [o homem primitivo de Lagoa Santa] levou na grande migração da Sibéria através do Estreito de Behring até ao Alasca e depois em direção ao sul chegando então ao Istmo do Panamá e, finalmente, à América do Sul.[24]

Estava se referindo, apesar da diversidade de sistemas adaptativos, ao modelo até recentemente mais aceito para a colonização das Américas: o big game hunters.
O modelo Clovis First concebe levas de migrações humanas cruzando a Beríngia antes do fim da última glaciação na era Whürm, há cerca de 14.000 AP, em um período de recuo das geleiras, quando estaria aberto o ice free corridor na América do Norte. O fenômeno que ocorreria entre intervalos de tempo, durante os mais ou menos 100 mil anos nos quais durou a glaciação, e ao final da qual o planeta sofreu uma brusca elevação de temperatura, responsável pelo derretimento de geleiras gigantescas e pela subida do nível do oceano, cobrindo então a região que ligava a Sibéria à América do Norte.
Dessa forma Walter afirmava sem dar fundamentação teórica ou referências, que a grande migração teria ocorrido há 25.000 AP[25], enquanto Anna Roosevelt nos informa que os sítios de matança da cultura Clóvis foram datados com C14 em 11.200 AP e 10.900 AP; e a Folson, ainda na América do norte, nos dá datações entre 10.900 AP e 10.200 AP[26]. Apesar disso, a mesma autora afirma que na América do Sul e Central não há registro de sítios que confirmem a teoria da migração Clóvis[27].
Segundo Anna Roosevelt, a teoria da migração Clóvis era consenso até meados do século XX, com o povoamento das Américas sendo estipulado em torno de 12.000 AP, quando povos oriundos da Ásia, seguindo animais de grande porte teriam atravessado a Beríngia, assentando-se nos planaltos norte-americanos em 11.500 AP, chegando aos Andes em 10.500 AP e colonizando completamente a América do Sul em 10.000 AP.[28]



Evolucionismo, ciclo civilização & barbárie e o “fardo do homem branco”

A noção de “raça”, posteriormente descartada como categoria científica, foi plenamente incorporada pela arqueologia e pela antropologia física brasileiras. Foram os estudos sobre ”raça” que resultaram na criação da categoria “Homem de Lagoa Santa” . . .[29]

As conclusões de Harold Walter, a partir de seus achados em escavações feitas nos sítios de Lagoa Santa, denunciam uma parte significativa do imaginário europeu ainda reverberando o abalo sísmico das publicações de Darwin e Wallace, ambas de 1848, em relação ao homem “primitivo” que habitou o território americano em um período anterior à chegada dos europeus modernos.
A própria designação do período como “pré-histórico” e a operação, portanto, com uma cronologia que tinha como balizas temporais o paleolítico, mesolítico e neolítico - mesmo como determinantes de estágios culturais, mas ainda assim, alinhados com a cronologia européia -, denuncia a importação de um modelo evolutivo desenhado a partir daquela realidade e a carência, ainda assistida hoje, pela elaboração de cronologias com base nas realidades culturais localizadas e de necessidades distintas.
Nesse caso, Walter operava pela taxonomia proposta por Worsae e Thomsen, em 1836, para a organização de peças arqueológicas em museus, agrupadas em três idades arqueológicas: pedra lascada, pedra polida e dos metais. Para o professor Ulpiano Bezerra de Menezes trata-se de

. . . simplesmente um esquema evolucionista que parte de referencial morfológico e funcional e de índices de complexidade tecnológica para justificar seqüências e estágios.[30]

Walter afirmou que os homens primitivos que fizeram a travessia da Beríngia (que determinava ter ocorrido há 25 mil anos) estariam em um estágio cultural paleolítico, pois sua cultura lítica demonstrava lascamentos rudimentares. Por sua vez, o homem primitivo de Lagoa Santa para ele teria chegado à Idade Mesolítica em virtude da

. . . ausência de cerâmica, os numerosos artefatos de pedra lascada e outros tendo apenas a ponta afiada e polida, [ que] sugerem uma etapa intermediária entre a Idade paleolítica (pedra lascada) e a Neolítica (pedra polida).[31]

Walter distinguiu o homem primitivo de Lagoa Santa de um indivíduo “progressivo e culto”[32], referindo-se por sua vez aos povos andinos e meso-americanos como “civilizados” e pressupondo com isso que a evolução seria desenhada por um processo linear e etapista, que levaria povos incultos inevitavelmente ao progresso. A idéia de progresso aparece nas similaridades, sabidamente frágeis, construídas entre as civilizações meso-americanas e andinas, e as civilizações egípcia e mesopotâmica. Com o estabelecimento de elos de ligação com a antigüidade clássica, na medida da relativa homogeneização cultural das civilizações do Crescente Fértil sob o helenismo e depois sob Roma, aí então estaria traçada a conexão entre a antiguidade americana e a base da civilização ocidental e médio-oriental.

Continua na Segunda parte


[1] Bacharel em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
[2] Bacharel em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo; Doutorando em Práticas Políticas e Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo
[3] Utilizamos a edição WALTER, H.V. Arqueologia da Região de Lagoa Santa: Minas Gerais (Índios pré-colombianos dos abrigos-rochedos). Rio de Janeiro: 1958.
[4] WALTER, H.V. Op. cit. p. 3.
[5] Sobre a biografia de Peter Lund, convém citarmos a descrição de AGUIAR, Raquel. Perfis - Peter Lund. Ciência hoje On Line, Agosto/2000, passim. “Peter Wilhelm Lund nasceu em 14 de agosto de 1801 na Dinamarca, aos 17 anos já era Bacharel em Letras, ocasião em que ingressou no curso de Medicina. Condecorado por dois trabalhos realizados em campo em 1824 publicou um livro sobre fisiologia que foi adotado nas Universidades de Copenhague, Viena e Nápoles e escreveu uma monografia de Zoologia, também premiada sobre o sistema de circulação nos crustáceos. Transferiu-se para o Brasil em dezembro do mesmo ano, fugindo do clima de sua terra natal e da tuberculose que matou dois de seus irmãos, fixando-se em Itaipu-RJ, onde se dedicou à montagem de coleções de Zoologia e Botânica remetidas posteriormente ao Museu de História Natural de Copenhague. Em 1829 realizou uma viajem a Hamburgo, ocasião em que exibiu o produto de suas pesquisas na França e Itália. Quando voltou ao Brasil em 1833, dedicou-se à Botânica das plantas domésticas juntamente com L. Ridel, viajando também por São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro e Minas Gerais para estudar a flora e a fauna locais”.
[6] Ibid., passim.
[7] Ibid. passim. Segundo a autora: "Pouco depois da descoberta de Lagoa Santa, Lund abandonaria suas pesquisas. Em carta à família, atribuiu a renúncia a problemas financeiros. Cástor Cartelle propõe outra justificativa: 'Lund ficou um tanto desorientado com a existência do homem pré-diluviano e sincrônico da fauna recente e extinta. Acredito que o fato de comprovar que sua perspectiva catastrófica não tinha sustentação foi uma das causas que o impeliram a abandonar a vida científica’".
[8] AGUIAR, Raquel. op. cit. passim.
[9] Ibid. passim.
[10] Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 8.
[11] A Profa. Dra. Marisa Coutinho adotou a classificação periódica de inicial, intermediário e formativo em relação a história da arqueologia brasileira até 1965, em suas aulas da disciplina “Arqueologia Brasileira”, ministradas no primeiro semestre de 2006 no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.
[12] Idem.
[13] FLEURY, Ana Carolina. Módulo arqueológico terá peças do Museu. Boletim da Universidade Federal de Minas Gerais, Nº 1272, ano 26, 12.04.2000.
[14] Walter Alves Neves defende a tese de que houve três levas migratórias do Homo sapiens a partir da África. A segunda, que ocorreu por volta de 70.000 anos atrás, ocorreu em direção à Austrália com uma ramificação em direção ao norte da Ásia, cujos descendentes teriam atravessado a América há 14.000 anos e possuíam características Australóides. Posteriormente, por volta de 11.000 anos atrás, uma outra leva teria atravessado Bhering oriunda do norte da Ásia, mas já com características Mongolóides, as quais prevalecem hoje nos povos indígenas americanos. Essa posição foi assumida por Neves em sua Conferência de abertura do “I Simpósio e Patrimônio de Minas Gerais” e no “II Simpósio Regional de Arqueologia e Patrimônio da Mata Mineira”, realizados em finais de 2006 em Juiz de Fora, cujos anais ainda não foram publicados.
[15] A construção de um passado pré-colonial: uma breve história da arqueologia no Brasil. Revista USP, 44:32-51. 1999-2000, p. 44.
[16] Op. cit. p. 17.
[17] Quem nos dá essa informação é FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Editora Contexto, 2003, p. 10.
[18] WALTER, H. V. 50 anos de excursões e explorações em Minas Gerais: uma autobiografia de H. V. Walter. Belo Horizonte: Vigília, 1976, p. 13.
[19] A informação nos foi passada por escrito, em resposta às perguntas elaboradas pelos autores.
[20] Que contêm ou são revestidas por carbonato de cálcio.
[21] Op. cit. p. 95.
[22] Ibid. p. 11.
[23] Ibid. p. 106.
[24] Ibid. p. 11.
[25] Ibid. p. 15.
[26] O povoamento das Américas: o panorama brasileiro. In: TENÓRIO, Maria Cristina. Pré-História da Terra Brasilis. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999, p. 36.
[27] Ibid. p. 39.
[28] Ibid. p. 35.
[29] GASPAR, Madu. Op. cit. p. 14.
[30] “Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico” in: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. V. 2, jan./dez. 1994, p. 25.
[31] Op. cit. p. 15.
[32] Ibid. p. 12.

.

Este artigo foi publicado pela Revista História e-História em 24/10/2008, que é uma publicação organizada com apoio do NEE-Núcleo de Estudos Estratégicos/Arqueologia da Unicamp. Disponível em: <http://www.historiahistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=120>. Acesso em: 14 nov 2008.

.

Nenhum comentário: