domingo, 28 de setembro de 2008

Comentários sobre um texto de Sartre a partir de reflexões hermenêuticas: "La Nausée"

La Nausée em sua edição em português

Jean Paul Sartre



Eduardo Melander Filho


O personagem-narrador do romance de Sartre, Antoine Roquentin, escreve seu diário na cidade de Bouville, na França, onde procura concluir suas pesquisas históricas sobre o marques de Rollebon.

“A figura do marquês é como a tinta com que escrevo: empalideceu muito, desde que trabalho com ela.
Antes de mais nada, a partir de 1801 deixo de lhe compreender os actos. Não são os documentos que faltam: cartas, fragmentos de memórias, relatórios secretos, arquivos da polícia. Pelo contrário, tenho documentos de mais. O que falta, em todos estes testemunhos, é firmeza, consistência. Não se contradizem, isso não, mas também não concordam; dir-se-ia que não se referem à mesma pessoa. E, todavia, os outros historiadores trabalham sobre informações da mesma espécie. Como é que fazem? Serei mais escrupuloso ou menos inteligente? ...
Evidentemente, pode admitir-se que Rollebon tenha tomado parte activa no assassínio de Paulo I, que tenha aceitado em seguida uma missão de alta espionagem no Oriente, por conta do czar, e traído constantemente o czar em benefício de Napoleão. Pode ao mesmo tempo ter mantido uma correspondência activa com o conde de Artois e ter-lhe comunicado informações de pouca importância para o convencer de sua fidelidade. Nada disso é inverossímil; Fouché, na mesma altura, representava uma comédia muito mais complexa e perigosa. Talvez também o marquês fizesse por sua conta comércio de espingardas com os principados asiáticos.
Sim, é verdade: fez possivelmente tudo isso, mas nada está provado;começo a pensar que não se pode provar coisa nenhuma. São tudo hipóteses sustentáveis e capazes de explicar os factos: mas vejo distintamente que saem de mim próprio, que são apenas uma maneira de unificar os meus conhecimentos. Do lado de Rollebon não vem a mínima luz. Lentos, preguiçosos, enfadados, os factos conformam-se mais ou menos com a ordem que entendo dar-lhes; mas o marquês permanece-lhes exterior. Fica-me a impressão de fazer um trabalho de imaginação pura. E, mesmo assim, tenho a certeza de que personagens de romance pareceriam mais verdadeiras: seriam, em todo o caso, mais divertidas.”

J.P.Sartre, A Náusea, pp.26-27. Lisboa: Europa-América, 1969.




O trecho referente foi retirado de “A Náusea” – La Nausée - primeiro romance de Jean-Paul Sartre, publicado em 1938 e dedicado à Simone de Beauvoir. A obra trata do historiador Antoine Roquentin, que se viu em voltas de escrever e pesquisar sobre o Marques de Rollebon, na cidade de Bouville, França. Antoine, durante o processo, vai chegando à conclusão de que a existência precede a qualquer significado. Por fim, desiste da investigação por não encontrar nenhum sentido naquilo que estava fazendo, recusando-se a dar vida a um personagem histórico, para inventar um personagem numa novela que ele escreve, personagem, que por se tratar de uma ficção, é desprovido de existência.
Na obra há a citação de Fouché. Possivelmente trata-se de Joseph Fouché, conhecido pela habilidade de assegurar sua própria sobrevivência e por ter se mantido no poder não importando quem estivesse no governo da França. De Girondino passou a Jacobino radical, participando ativamente do Terror e depois conspirando contra Robespierre. Participou também do golpe de Estado de Napoleão e depois conspirou pelo retorno dos Bourbons. Foi destituído apenas em 1816.
O personagem historiador Antoine Roquentin revela uma amargura imensa por não conseguir escrever sobre o Marques de Rollebon. Ele não consegue trabalhar com os documentos da maneira que ele gostaria. Eles nada revelam. Até consegue articular os fatos de tal maneira que correspondam às suas expectativas, mas não se convence. Sua angústia o leva a impressão de estar fazendo um trabalho de imaginação pura e que os personagens de um romance pareceriam mais verdadeiros.
Vamos examinar o texto de acordo com os problemas que se apresentam ao historiador, ou seja, o personagem Antoine. Obviamente já estudamos o perfil do historiador, seguindo o conselho de Carr, mesmo que ele seja apenas um personagem literário.
O historiador em questão possui dois tipos de problemas: de relacionamento com os documentos e de compreensão. Vamos então tratar dos temas um a um, de acordo com os textos dos hermeneutas.
O primeiro problema, de relacionamento com os textos, Antoine nos diz que não faltam documentos, mas falta-lhes firmeza, além de parecer que não se referem à mesma pessoa. Na verdade os textos não falam por si só. A reprodução do que os documentos diziam, esse fetiche pelo documento, próprio da escola metódica e dos positivistas e mesmo do século XIX – segundo Carr - hoje é considerada ultrapassada, mas não na época do personagem.
Collingwood designa essa história documental de história de cola e tesoura, como se fossemos recortando o que nos interessa e colando numa ordem pré-fixada. Numa comparação com a história científica, recorda que os historiadores de cola e tesoura lêem o documento com o espírito receptivo para descobrir o que eles dizem, enquanto que os historiadores científicos lêem os documentos interrogando-os mentalmente. Os historiadores de cola e tesoura lêem os autores considerando que nunca serão capazes de descobrir, a partir dos mesmos autores, aquilo que eles lhe dizem.
E. G. Carr, que também critica essa reverência excessiva dos metódicos ao documento, que consideram a história documental como imutável depois de escrita, considera, em relação aos fatos históricos, que eles nunca chegam puros, cabendo a mente idealizá-los. Por isso muitos eruditos – de cola e tesoura - por causa do excesso de documentos, da pesquisa interminável conseqüente, impacientes que ficam, caem no ceticismo, considerando que todos os julgamentos históricos são relativos, não havendo por isso verdade histórica objetiva. Carr nos lembra que o estabelecimento de fatos básicos não repousa na qualidade dos fatos, mas da decisão a priori do historiador.
Como vemos, o personagem historiador porta-se como um historiador de cola e tesoura, esperando que o texto lhe diga o que não pode dizer e que os fatos se revelem por si só.
O segundo problema, o de compreensão, quanto a isso, Antoine confessa de, apesar dos fatos se conformarem com a ordem que ele quer dar, a figura do marques permanece exterior. A interioridade que o personagem deseja alcançar seria possível através da compreensão.
Dilthey considera a compreensão como um método que consiste em “entrar na cabeça do objeto de estudo através da ‘empatia’”. O ato de se colocar no lugar do outro é compreender, sempre levando em questão de que o historiador é também sujeito histórico. Entende como empatia o universo do pensamento que é compartilhado socialmente, principalmente a linguagem. Todos já nascem compartilhando de uma simbologia comum, no que Dilthey dá o nome de inconsciente coletivo compartilhado.
E. G Carr considera possível alcançar a compreensão não através da empatia, mas através da “imaginação”.
Croce também faz parte da linha da compreensão. Para ele, o alcance da compreensão se dá pela via do reencenamento, ou seja, reviver teatralmente a experiência do sujeito histórico. O conceito de reviver, só é possível aplicá-lo pela ligação cultural e temporal que se manifesta acima do indivíduo, o espírito coletivo. Croce também considera que toda a história é do presente, que é uma história viva. A história passada, a que já não tem ligação com o presente, é uma história morta. Nessa linha, separa a história (história viva) da crônica (história morta). Assim, toda a história separada dos documentos vivos são narrações vazias e, porque vazias, privadas de verdade.
Collingwood pratica a maneira Croceana de reviver o passado. Para ele o que se tem que compreender são as intenções contidas num conjunto de ações. Em relação aos documentos considera que a interpretação não se funda no testemunho, pois o historiador vai para o testemunho não para aceitá-lo, mas para criticá-lo. Sendo a história a história do pensamento, o historiador deve tentar recuperar o que há de comum entre o dele e o dos outros através do re-encenar. Pode-se alcançar a compreensão através da “afinidade” do historiador com o objeto de estudo, a fim de recuperar o pensamento. Para a história, o objeto a ser descoberto não é o evento, mas o pensamento expresso nele. Descobrir o pensamento é compreendê-lo. A história do pensamento, ou seja, toda a história, é a re-pre-sentação do pensamento passado no próprio espírito do historiador. Re-presenta-o no contexto do próprio conhecimento, e ao re-presenta-lo , critica-o, faz dele juízo de valor e corrige possíveis erros que nele encontre.
Antoine reclama no final por ficar com a impressão de estar fazendo um trabalho de imaginação pura, mas é justamente essa imaginação uma das condições necessárias, segundo Croce e Collingwood pelo menos, para se alcançar a compreensão. Mas quais seriam os desígnios do personagem enquanto personagem literário? Não sabemos. Mas, com certeza, isso é tarefa da literatura. De nossa parte, preferimos tratar dos que existem e existiram, deixando de lado àqueles que nunca existirão.


2006

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