sábado, 24 de outubro de 2009

AS RAZÕES DA ABOLIÇÃO

Revolta escrava

Navio negreiro


Eduardo Melander Filho

“A crescente necessidade de mão-de-obra numa economia cafeeira em expansão e a ascensão de grupos urbanos descontentes com a escravatura como sistema tornou a abolição uma necessidade. Por que então pode alguém perguntar, os primeiros passos em direção à abolição foram dados no fim da década de 1860 e nos primeiros anos de 1870, antes que estas duas forças pudessem ser consideradas muito fortes? E porque o tráfico de negros era proibido desde 1850? A resposta a estas duas perguntas deve ser encontrada na pressão da Inglaterra.”

GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo, Perspectiva, 1979. Capítulo “As causas da abolição da escravatura do Brasil”, p. 67.



“A pressão inglesa: Honra, interesses e dignidade”, texto de autoria de Jaime Rodrigues, trata do processo que levou ao fim do tráfico de escravos da África para o Brasil em 1850.
O autor parte da premissa de que, em relação à questão, as explicações mais freqüentes para o final do tráfico são as que privilegiam o papel da pressão inglesa ao Império, pressão essa que se acirrou na década de 1840. Tal argumento seria controverso por ser tomado como determinação histórica. Referindo-se a longa história do relacionamento anglo-lusitano, depois anglo-brasileiro, sobre a extinção do tráfico, enumera seqüencialmente os diversos acordos: Tratado de Aliança e Amizade de 1810 em que D. João se comprometia a manter o tráfico apenas com os territórios africanos que lhe pertenciam ou que ele tivesse “legítimas pretensões”; Congresso de Viena, onde se decidiu indenizar o governo português em 300.000 libras pela captura de navios a partir de 1812, segundo os ingleses por serem de outros paises, embora usassem bandeira portuguesa e perdão da dívida de 600.000 libras contraída em 1809; outro tratado firmado no Congresso de Viena abolindo o tráfico acima da linha do Equador (Costa da Mina), causando atritos entre traficantes e ingleses residentes nas capitanias; Convenção Adicional de 28/07/1817 regulamentando os pontos firmados em 1815, permitindo direito recíproco de visita aos navios, apressamento de navios de tráfico ao norte do Equador, dando indenizações por apressamentos indevidos, proibindo a captura de navios em águas territoriais, instituindo Comissões Mistas em Serra Leoa, Rio de Janeiro e Londres, nomeando Comissários Juízes e Comissários Árbitros e acordando que os africanos apreendidos seriam alforriados e utilizados como assalariados em prestação de serviços.
Conversações com os ingleses a respeito da extinção do tráfico se arrastavam desde 1808. No entanto era notório que os gabinetes conservadores ingleses da época adotaram o princípio de não reconhecer nenhum Estado no Novo Mundo que não tivesse abolido. Assim, as conversações após a independência giraram em torno da barganha do reconhecimento da independência em troca da garantia de abolição do tráfico. O reconhecimento veio em 1825, sendo assinado logo após o Tratado anglo-brasileiro de 13/11/1826, que previa o fim do tráfico para dali a três anos, mantendo os termos da Adicional de 1817. O tratado foi ratificado pela Coroa inglesa em 13.03.1827, permitindo conseqüentemente o tráfico legal até 13/03/1830.
Em 1826, quando a Assembléia Legislativa voltou a funcionar, o tema do tráfico foi o de maior destaque, discutindo o impasse criado pelas “ingerências externas”, o que feria a “soberania da nação”. Cunha Matos, em pronunciamento, negou a intenção filantrópica inglesa. Clemente Pereira propôs a extinção em 14 anos e não mais em três anos conforme o acordo, com a desculpa de que a economia nacional dependia do braço escravo. Havia uma extrema divergência entre o executivo e o legislativo quanto à questão. A Câmara, apesar de aceitar os termos do acordo a partir de 1827, continuou debatendo durante anos. Os debates giravam em torno aos efeitos negativos do tratado, que além de cercear as atribuições legisladoras da Assembléia, pois impunha penas e sujeitava súditos brasileiros aos tribunais estrangeiros (Araújo Lima apresentou emenda ao projeto Clemente, propondo julgamento de crimes de tráfico por tribunais brasileiros e não mais pela Comissão Mista), prejudicava o comércio brasileiro numa área que mais ele poderia competir: a África. Cunha Matos, nesse ínterim, continuava a definir o tráfico como “provedor de mão de obra e pilar da soberania brasileira”. A situação é melhor definida no trecho adiante, recortado do texto do autor: “A cidadania restrita aos proprietários, e a eles cabendo o direito político de decidir os rumos da “nação”, era uma maneira eficaz de afirmar, perante o exterior, que a soberania nacional passava antes pela consolidação do poder senhorial na sociedade brasileira. Consolidar essa ordem de coisas consistia, entre outros fatores, em regulamentar a sociedade por meio da criação do povo “melhorado” e da constante vigilância policial, bem como definir os limites do poder das autoridades na relação senhor-escravo...”. No entanto, um pouco antes de expirar o prazo de cessação do tráfico legal, o discurso “humanitário” tomou conta da Assembléia. O próprio Cunha Matos, numa guinada de 180 graus, advogou em discurso “o corte ao tráfico de escravos porque assim o exigia a humanidade”.
A partir de 1831, com a instalação da Regência, os Ministérios liberais subseqüentes tinham uma posição propícia ao término do tráfico. Por um tempo, no início, os “importadores” foram desencorajados em razão da perseguição que a frota inglesa promovia aos traficantes, perseguição essa que crescia dia a dia. Houve intensa repressão ao desembarque de negros de Pernambuco ao Pará. Foi em 1831 que também se votou a primeira lei abolindo o tráfico. Essa lei se transformou em “letra morta”, pois até 1837 o tráfico aumentou em vez de diminuir. No parlamento, os debates e posições dúbias a respeito do tema se prolongaram até 1850.
Os partidos políticos, sem exceção, adotavam posições distintas dependendo da situação. Frente aos “eleitores proprietários”, defendiam a permanência do tráfico. Frente à Coroa Imperial, propunham projetos de extinção do tráfico, devido aos problemas de relações exteriores. Nesse contexto, Caldeira Brant, o autor de 1831, apresentou novo projeto para revogar o anterior de sua autoria, acrescentando que os africanos livres que porventura tivessem sido comprados não poderiam reverter a sua situação, garantindo que os compradores não poderiam ser processados, deixando o ônus do crime para o traficante. Mas na prática, a lei vigente não tinha sido colocada em execução, pois até aquele momento nenhum proprietário havia sido punido de fato.
Com a maioridade de D. Pedro II, a Câmara foi dissolvida e só voltou a se reunir em 1843. Os liberais assumiram o Ministério em 1844, com a missão de elaborar novo tratado antitráfico, pois o anterior havia expirado naquele mesmo ano. Com a pressão, por um lado, dos ingleses que desde 1840 aumentaram o apressamento de navios e dentro de águas territoriais brasileiras, e de outro, dos senhores de terra que exigiam o fim da lei de 1831, houve um deslocamento do discurso da “mão de obra indispensável” como argumento de manutenção do tráfico” para “o perigo externo à soberania nacional”. “A ameaça à nação, representada pelas pressões inglesas, tornava-se mais forte do que a ameaça difusa da falta de mão de obra”, frase do autor.
As negociações com os ingleses entraram em colapso pela negativa brasileira de assinar um novo tratado de acordo com as proposições inglesas. Conseqüentemente, o governo inglês decidiu promulgar unilateralmente o “Bill Aberdeen” em 08/08/1845, que deliberava o julgamento de navios brasileiros traficantes como “piratas” em tribunais ingleses, capturando-os em qualquer lugar. Em 1848 foi aprovado o projeto Barbacena para evitar “o vexame da submissão aos ingleses”, exceto o artigo “14” que revogava a lei de 1831, cuja votação foi adiada para 1850. Outro trecho do texto é ilustrativo em relação ao problema inglês: “O agravante era a entrada dos navios ingleses em portos brasileiros para capturar tumbeiros, além da consciência da soberania ultrajada. Essa consciência, expressa por Silveira da Mota, não deixava de colocar na história do Brasil a aliança tácita entre traficantes, autoridades do Império e senhores para manter o tráfico em nome da manutenção da agricultura escravista, aliança agora rechaçada em razão da soberania ameaçada pelas agressões britânicas...”.
O apressamento de navios brasileiros, que já vinha num crescendo desde 1848, tornou-se gigantesco no ano de 1850. Nesse mesmo ano foi votada em Seção Secreta da Câmara a supressão do artigo “14” do projeto Barbacena, artigo que revogava a lei de 1831 e outras mudanças que ocorreram em 1837. Ficou assim garantida a equiparação jurídica do crime de tráfico com o de pirataria, o julgamento de traficantes sob a alçada da Auditoria da Marinha e dos proprietários sob a Justiça Comum.
O autor, por último, explica as razões que levaram a extinção efetiva do tráfico em 1850 e não em 1831. Entre os motivos:

- Maior coesão de parcelas da elite política;
- Esgotamento do projeto de construção do mercado de mão de obra baseado no escravo como alicerce da produção;
- Vínculo entre corrupção dos costumes e escravidão;
- Manutenção do direito da propriedade existente;
- Pressão inglesa e a necessidade de garantir a soberania.

Ressalte-se o medo dos proprietários pelas ações coletivas dos escravos contra o cativeiro em 1831, justificadas na compra de escravos no tráfico ilegal e a aceitação dos mesmos do fim do tráfico em 1850, pelas leis mais brandas aos proprietários que haviam comprado mão de obra no mercado ilegal. Por fim, a pressão inglesa do “Bill Aberdeen” reforçou o surgimento de um consenso entre os parlamentares.
Jaime Rodrigues, em relação à questão da pressão inglesa, muito embora não negue a sua importância, chega em determinados momentos a minimizá-la, segundo nossa interpretação.
Jaime caracteriza em dois os momentos que precedem à promulgação da lei de 1950: o momento em que se defendia a manutenção do tráfico, porque se precisava de suprimento de mão de obra escrava e o momento em que o perigo à soberania nacional era mais importante.
No primeiro momento havia o medo de que a ordem escravocrata estivesse em risco. Num país onde se buscava a consolidação do Estado Nacional baseado na ordem escravocrata e que essa consolidação ainda estava longe de se realizar, realmente era temerária qualquer atitude em oposição ao tráfico, pois isso colocaria em risco a própria base do sistema que se procurava construir. Mesmo assim, isso não evitou que fosse promulgada a lei de 1831, em cumprimento ao Tratado anglo-brasileiro de 1826, este sim aceito como condicionante ao reconhecimento da independência.
Apesar da lei promulgada, as medidas de contenção ao tráfico não foram implementadas, com clara conivência inclusive dos poderes constituídos. Por quê? A razão principal é que o Estado se encontrava num dilema. Por um lado, as revoltas que assolavam o país e que só acabaram no fim da década de 1840 e por outro, a obrigação de cumprir as obrigações internacionais que todo Estado deve cumprir. Somente em meados de 1850, quando o Estado baseado na ordem escravista está consolidado é que a questão do tráfico foi resolvida definitivamente. O autor sustenta no texto essa indecisão por parte o Estado através dos debates na Câmara. Posições dúbias, de protelação, de extensão de prazos de cumprimento aos acordos.
Por outro lado, embora a extinção do tráfico pudesse afetar a ordem estabelecida pela falta de suprimento de mão de obra, a discussão da instituição da escravidão nunca esteve em questão. Extinção do tráfico não era correlacionada à extinção da escravidão. Isso o autor evidencia no texto.
Assim, na década desde os primórdios, mas principalmente na década de 1840, sabia-se que a extinção do tráfico viria inevitavelmente. O problema era de convencimento, o que foi conseguido indiretamente pela pressão britânica e mais diretamente pela redução das conseqüências judiciais aos proprietários que usufruíram desse comércio ilegal durante o período.
Podemos assim concluir sobre o autor, que o fim do tráfico se deu por vontade do Estado, que se viu livre para tal decisão a partir do momento de sua consolidação como tal, com a respectiva ordem escravocrata garantida (direito de propriedade), sendo, porém, reforçado em sua decisão através do convencimento exercido pela pressão inglesa, que passa a ser um elemento secundário, ou pelo menos o não mais importante no entendimento da questão. Essa é nossa interpretação da leitura que o texto permite nesse ponto.
Já Richard Graham vê na pressão inglesa o fator fundamental para a extinção do tráfico. Muito embora o próprio autor reconheça o papel do Império, que exercia em 1850 controle sobre a nação e que a abundância de escravos ajudou na aprovação da lei, ele caracteriza o fim do tráfico como conseqüência direta da invasão dos portos brasileiros pela Inglaterra.
O autor vai mais longe. Enquanto Jaime Rodrigues separa a questão do tráfico da questão da escravidão, evidenciando o término da pressão inglesa em 1850, além de maximizar o papel do Estado no episódio, Graham propõe que a pressão inglesa se dava no sentido da extinção da própria escravidão, tanto que, em seu texto, refere-se à pressão inglesa que se manteve até o ano 1871 com a promulgação da Lei do Ventre Livre, quando então os britânicos param de intervir. Essas são as diferenças básicas entre ambos os enfoques sobre a questão. Sobre Graham, veremos mais a seguir.
Richard Graham, com o texto “Escravidão, Reforma e Imperialismo”, considera que duas forças de longo alcance se apresentam como explicações da causa da abolição da escravatura no Brasil: a ascensão do café no centro-oeste paulista e o efeito imediato da fuga de escravos.
Fazendo um balanço crítico da historiografia que trata da lei de 1888, que libertou mais de ¾ de milhão de escravos e, segundo essa historiografia, arruinou latifundiários e destruiu o sistema político de então, diz que se fica a impressão de que o parlamento promulgou tal lei por razões humanitárias e por pressão da opinião pública, incitada pelos abolicionistas. Acusa aos manuais brasileiros de enfatizarem a humanidade do Imperador e da Princesa, relegando ao esquecimento a pressão dos próprios escravos a seu favor. Faz citação a alguns autores que corroboram essa visão historiográfica: Clarence H. Haning, segundo o qual comícios, artigos, etc., reduziram a relutância do Parlamento abolicionista e Percy Alvin Martin, que se refere à campanha abolicionista e parlamentar e a ação voluntária de alguns senhores e só de passagem à omissão do exército em perseguir escravos fugitivos. E o autor propõe a questão: “Como o Parlamento escravista acabou com a escravatura por maioria esmagadora? Abandonaram seus vitais interesses em função de serem convencidos por discursos?”.
Todas essas explicações partem de teses secundárias. O papel dos abolicionistas foi importante, mas indiretamente, pois se utilizaram dos novos grupos urbanos que surgiram após a guerra do Paraguai, que estimulados pela propaganda, encorajaram a fuga em massa dos escravos. Quanto aos fazendeiros, legalizaram uma situação que já era de fato, evitando posterior perda de autoridade e posição social. A escassez de escravos já vinha de longa data. Influências e pressões externas foram as responsáveis por essa escassez e pelas medidas tomadas em favor dos escravos antes de 1871. Para se entender a ação das forças que levaram à abolição é necessário se entender as mudanças econômicas que se deram na época, que foram a ascensão das exportações de café e conseqüente expansão de plantios para novas regiões e o crescimento e importância das cidades.
A revolução Industrial na Europa do século XIX teve como algumas conseqüências o aumento da população urbana e do consumo de artigos de luxo, dentre os quais o café. Novas tecnologias empregadas no transporte marítimo e terrestre diminuíram o custo das mercadorias. Em conseqüência, as exportações cresceram de maneira acentuada. As exportações de café estimularam a construção de vias férreas e em 1868 novas linhas foram construídas de Santos ao centro-oeste Paulista, região cafeeira em expansão em detrimento ao decadente Vale do Ribeira. Com o avanço das fronteiras econômicas, o centro-oeste paulista se incorporou à economia monetária.
A ascensão desse “novo grupo de homens” do centro-oeste paulista, cuja origem não era ligada às tradições da terra, mas sim oriundos de um grupo menos favorecido de pequenos proprietários e negociantes (ao contrário dos fazendeiros do Vale do Paraíba), teve conseqüências notáveis. Esse grupo considerava a terra capital e não Status. Eram inovadores, usavam novas técnicas agrícolas e apoiaram, quando não as construíram, às estradas de ferro. Era um grupo que exigia uma fonte de mão de obra mais abundante do que a instituição da escravatura era capaz de oferecer. Esses novos fazendeiros “construtores de estradas de ferro” mostravam interesse na importação de trabalhadores para substituir o braço escravo.
Com crescimento do comércio exterior, novos grupos urbanos surgiram. Com o resultante crescimento do comércio nas cidades, novos estabelecimentos surgiram, como os bancos, Cias. de transporte, seguradoras, etc. Esses negócios exigiram o aproveitamento de moradores urbanos para o trabalho em escritórios, na burocracia administrativa, assim como no comércio em geral. Itu, Sorocaba e Campinas se transformam em centros distribuidores de gêneros alimentícios. Com o crescimento urbano, as áreas de monocultura deixam de ser auto-suficientes em termos de produção de alimentos.
Surgiram novas atitudes dissociadas dos valores ligados à terra. A influência da Europa era notável: moda vestuária, hábitos alimentares, arquitetura, etc. A ideologia dominante era a da “recompensa de acordo com a capacidade”. Três tipos urbanos que surgiram nessa época eram particularmente adeptos do fim da escravidão: oficiais militares, engenheiros e industriais. Os militares, muito dos quais engenheiros, procediam das cidades e tinham antipatia pela escravidão, além de desprezarem aos bacharéis. Industriais têxteis, muitos deles se transferiram da Bahia para o centro sul em busca de mão de obra assalariada. Os valores desses novos grupos urbanos eram ligados ao conceito de mudança e progresso, na crença numa sociedade de mobilidade social e no individualismo e na economia baseada no lucro. Tais valores exigiam a liberdade de contratar ou despedir.
Sempre segundo o autor, a necessidade de mão de obra nas fazendas de café, mais o aparecimento de grupos urbanos descontentes com a escravidão, “tornou a abolição uma necessidade”. No entanto, os primeiros passos no sentido da abolição foram dados no fim da década de 1860 e início da de 1870, antes que essas duas forças (novos fazendeiros e novos grupos urbanos) fossem fortes (como já o dissemos anteriormente).
O fim da década de 1870 se tornou favorável ao abolicionismo, pois a economia em expansão exigia mais força de trabalho que a escravidão pudesse dispor.
A causa imediata mais importante da abolição foi a fuga de escravos de São Paulo e Rio de Janeiro. Desde 1886 os escravos fugiam por “sua conta e risco”, dirigindo-se às cidades, que se tornaram “território livre” para os escravos. Não houve nenhum empenho na repressão por parte da burocracia do Estado e do Exército, que inclusive se recusou à perseguição. Nos primeiros meses de 1888, finalmente, os fazendeiros começaram a libertar seus próprios escravos para evitar que estes abandonassem as fazendas. Os abolicionistas há muito tempo levavam escravos que vieram depois de 1831 aos tribunais para conseguir sua libertação, mas somente após 1883 é que as sentenças começaram sair em favor dos escravos. Após 1888, os escravos desorientados, ficaram sem saber o que fazer com a sua liberdade.
Concluindo, o autor enumera uma série de conseqüências pós 1888:

- Depressão geral no interior e empréstimos aos latifundiários;
- Deslocamento do centro de poder do Nordeste e Vale do Ribeira para o Centro-oeste paulista;
- Vitória no caminho da modernização;
- Enfraquecimento da Monarquia que tinha vínculos com latifundiários;
- Até os ex-escravos, agora assalariados, privados de senso de vitória, deram passo ao mundo moderno.

Hebe M. Mattos de Castro, em “Laços de Família e Direitos no Final da Escravidão”, começa sua exposição relatando que a partir de 1850, houve a concentração da mão de obra escrava nas grandes fazendas de café, com a conseqüente subida do preço dos escravos e a gradativa perda desse segmento por parte da população livre. Foi essa mesma mão de obra escrava a responsável pela expansão cafeeira a leste e oeste. Essa força de trabalho das fazendas localizadas das novas regiões (centro-oeste paulista) correspondia a 90% e das antigas regiões (Vale do Paraíba) 50%.
A autora trata exatamente dessa experiência que foi para a escravidão, a introdução do tráfico interno em substituição ao externo após 1850. Durante esse período, se deu a erosão “por dentro” do regime escravocrata, que culminou com os escravos reivindicando direitos. Aquilo que era considerado como privilégio antes de 1850, após foram reivindicados como direitos.
O tráfico interprovincial proporcionou intensa transferência de mão de obra escrava para os centros cafeicultores. O regime de trabalho era de no mínimo 12 horas por dia, sem dia de descanso e até a refeição era servida diretamente no local de trabalho para que o tempo fosse o mais possível aproveitável. A grande maioria desses escravos vinha de outras regiões, cada qual com a sua realidade própria. Diferentemente do escravo africano, que era tirado de seu meio original e colocado numa realidade completamente nova, os oriundos do tráfico interno já possuíam uma experiência prévia a respeito. Em seus lugares de origem, muitos deles, principalmente aqueles que vinham das cidades, tinham alguns privilégios relacionados ao controle de seu próprio tempo, manutenção de família, roça própria, dias de folga, horas livres, pecúlio e possibilidade de alforria. Quando em contato com as novas realidades dos cafezais, esses escravos não aceitaram o novo regime de trabalho e a perda dos privilégios, embora não contestassem propriamente a ordem escravista. Mas a partir de 1860, essa ordem passou a ser contestada.
A violência andava lado a lado com o paternalismo, pois a própria violência tem limites. Promessas de alforria, favorecimento de plantéis de família, pedaços de terra, etc., constituíam instrumento de controle ligando-o ao vínculo patronal, através da concessão desses privilégios. Mas no cafezal a realidade era diferente. E quando os escravos começaram a “reivindicar antigos privilégios”, os fazendeiros compreenderam como “reivindicação de direitos”. A partir daí aconteceram muitas revoltas, não com o objetivo de fuga, mas para recuperar privilégios perdidos. É importante notar que esses movimentos aconteceram já bem antes do auge do movimento abolicionista de 1880. Já nessa época, negros fugiam. O fato é que após 1850 a escravidão se tornou muito mais violenta em todos os sentidos, com os escravos se recusando a trabalhar se não existissem as condições anteriores: a do cativeiro livre.
O papel do Estado também foi importante no sentido de transformar esses privilégios em direitos. Em 1869 foi promulgada a lei que proibia a separação de família, coisa que era rara antes de 1850 e que se tornou comum após, em função da expansão dos cafezais. Em 1871 veio a lei do ventre livre, que também reconheceu práticas que já eram costumeiras, como o direito ao pecúlio e o direito a comprar sua alforria. Essa lei passou por força do trono, assim como a lei dos sexagenários.
A lógica paternalista do domínio escravista consistia em transformar em concessão toda ampliação do espaço de autonomia no cativeiro. Como exemplo, a concessão da alforria, que bem administrada pelos senhores podia gerar cativos de confiança e dependentes leais. Filhos, irmãos e netos no cativeiro, prendiam os dependentes forros a seus ex-senhores. No entanto, quando nas fazendas paulistas surgiram movimentos de escravos a partir de noções preestabelecidas de castigo justo, de ritmos de trabalho aceitáveis, enfim, de noções de cativeiro justo e que a priori reconhecia o sistema, ficou claro que “a universalização de um padrão de comportamento senhorial (a concessão) pressupunha tacitamente no reconhecimento de “direitos” e isso era incompatível com a ordem escravista, colocando em xeque as bases de reprodução dessa própria ordem. Com direitos não há escravos. E assim a instituição da escravidão sofria, gradativamente, cada vez mais, de falta de legitimidade. Mesmo assim, num contexto de falta de mão de obra, as alforrias se multiplicaram até para, contraditoriamente, garantir essa mesma mão de obra, enquanto os movimentos escravos, cada vez mais politizados, pressionavam por “direitos universais” e não mais por “privilégios pessoais”. A situação é bem definida nesse trecho do texto em questão: “A defesa das alforrias em massa, que se generalizava entre muitos deles, buscava resgatar a ascendência moral sobre os cativos, em especial nas áreas escravistas menos tocadas pelo tráfico interno”. “Os que as advogavam confiavam não apenas na gratidão dos libertos, mas, sobretudo na força dos laços comunitários e familiares entre os cativos para mantê-los, se não nas fazendas, pelo menos na região”.
A concessão de alforria em massa incondicional foi o único meio de tentar se manter os ex-escravos nas fazendas. Esses senhores convertidos de última hora à causa abolicionista, acreditaram e jogaram pesado na gratidão dos libertos e na força dos laços familiares e comunitários. No entanto após o treze de maio, o sistema de trabalho proposto aos libertos foi um fracasso, uma parceria a eito, com a continuidade do trabalho comunitário supervisionado (feitor com outro nome) e divisão da safra. Entre as condições de permanência que os libertos impuseram era o do controle do seu tempo. Houve a quebra geral da autoridade senhorial, com ex-escravos se recusando a sair das fazendas, mesmo quando expulsos. Em conseqüência, houve a crise de abastecimento em 1889 com a quebra da safra desse ano.
A política emancipacionista Imperial, manteve sob tutela estatal ou privada sobre os libertos de 1831 (extinção do tráfico), 1871 (ingênuos) e 1885 (sexagenários), assim como alforriados por fundo de emancipação, privando-os de cidadania. Desde 1850, a legislação Imperial tendeu a transformar os costumes em direitos, mas mantendo a condição civil especial para os libertos. O Estado Imperial assegurou o fim do tráfico, o direito à família, mudou em direito a prática do pecúlio e acesso à alforria e proibiu o açoite em 1886.
Concluindo, Graham vê na pressão inglesa, necessidade de mão de obra para as plantações de café e ascensão de grupos urbanos, os fatores fundamentais para o fim da escravidão.
Como já dissemos anteriormente, considera que a pressão inglesa se dá até o ano de 1871, quando, a partir daí, cessa. Justifica que, até essa data, não havia grupos internos organizados e que, portanto, a própria assinatura da Lei do Ventre Livre se deu por pressão externa. Caracteriza o Império como ligado aos interesses patronais, que seriam contra qualquer medida que beneficiasse forças progressistas contra seus interesses de “classe”. Assim, todas as medidas tomadas pelo Império em favor do fim da escravidão, seriam resultantes de pressão de grupos contrários à ordem patriarcal e na ainda ausência deles, do baluarte do progresso mundial: a Inglaterra.
A partir de 1871, dois novos grupos se consolidaram enquanto grupos de pressão ao Império.
O primeiro deles foram os fazendeiros “empresários” do centro-oeste paulista, região de novo desbravamento. Esses novos proprietários, antigos pequenos donos de terras e comerciantes, eram empreendedores. Adotaram novas técnicas, construíram estradas, eram capitalistas enfim, em oposição aos antigos proprietários que eram ligados às tradições da terra e a um sistema de produção ultrapassado e que não cabe dentro do capitalismo. Foi esse novo grupo, que se posicionou contra o escravismo e pressionou pela extinção da escravidão e pela importação de mão de obra estrangeira e assalariada. Foram esses fazendeiros que no último momento darão alforria generalizada.
O segundo deles são os grupos urbanos que surgiram como conseqüência do crescimento das cidades em função do comércio exterior, grupos esses imiscuídos no comércio das cidades, nos serviços públicos, nas profissões liberais, nas forças armadas, etc. Enfim, são grupos das camadas médias urbanas, ligados às idéias e costumes advindos da Europa, que assimilaram conceitos de liberdade e individualismo, ou seja, de ideologia também capitalista. Foram esses grupos, também progressistas e avessos à ordem escravocrata, que, através da propagação de idéia, influenciarão diretamente os escravos no sentido da rebelião e fuga.
A lógica da análise de Graham baseia-se na “intervenção externa”. São fatores externos que efetivamente definem a história do período. Foi por influência Européia, via pressão inglesa, que o Império se viu forçado a tomar atitudes antiescravistas. Também por influência externa, surgiram os novos proprietários, que, capitalistas que eram, estavam ligados aos interesses econômicos centrados na Europa, através da produção de café para o mercado mundial. Os grupos urbanos eram ligados também aos valores de fora, assim como surgiram em conseqüência dessa mesma ligação externa. Em resumo: Capitalistas ingleses que, através da pressão, propiciaram o surgimento dos proprietários de terra capitalistas brasileiros e grupos urbanos ligados ao capitalismo, que pressionaram, através dos escravos e também diretamente, a decretar o fim da escravidão, que por sua vez, era antagônico ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil, surgido por introdução Européia. Dentro dessa lógica, a escravidão é a antítese do capitalismo no Brasil.
Graham, além de negar qualquer papel de sujeito histórico aos escravos, sugere que os sujetos históricos brasileiros somente o são enquanto objetos históricos de outro sujeito, o capitalismo europeu.
Enquanto Graham procura uma lógica externa dos acontecimentos, Hebe de Castro procura na lógica interna a explicação do movimento histórico no período. Ela dá o papel de sujeito histórico aos escravos, agentes que são de sua própria luta, embora não negue o papel importante de outros movimentos como o abolicionismo. Dá status de autônomo aos movimentos dos escravos ao relatar que eles surgiram bem antes de outros movimentos estarem organizados. Esses movimentos, a princípio não contestatórios à ordem escravocrata, surgiram como expressão das contradições internas surgidas dentro do próprio sistema escravista.
A autora vê na questão dos privilégios concedidos aos escravos, que associados à pedagogia da violência, serviam de controle aos próprios escravos, o germe da destruição do mesmo sistema. Após o fim do tráfico em 1850, com o crescimento da demanda por braços escravos para o plantio de café, houve a introdução do tráfico interno. A concentração de escravos nos cafezais e o regime de trabalho intenso a que foram submetidos, em detrimento aos relativos privilégios concedidos pelos antigos patrões, resultou em violência e em movimentos reivindicatórios. A partir do momento em que as reivindicações de privilégios são generalizadas, portanto homogeneizadas, passam a ser reivindicações de direitos, entrando em choque com a lógica do regime escravista. É o início da autodestruição.
O Império teve um papel importante, pois ao transformar situações de tradição em direito, incentivou o processo. Nesse sentido, a autora percebe o Império como um elemento autônomo e não ligado aos interesses dos proprietários, conforme Graham sugeriu. Hebe define inclusive que o Império agiu em favor dos escravos desde 1831.
Quanto aos proprietários, no nosso entendimento, estavam perfeitamente integrados na economia capitalista mundial e que, no princípio, o sistema escravista serviu perfeitamente a estes propósitos. Com o passar do tempo, em função das contradições internas do próprio sistema de produção é que os problemas sugiram. Mesmo assim tentaram manter a escravidão até quando puderam, utilizando finalmente o subterfúgio da alforria geral, como tentativa de manter agregados às fazendas os ex-escravos.
Assim, enquanto Graham caracteriza os escravos como objetos históricos de sua liberdade, o Império comprometido com os proprietários escravistas e sujeito as pressões de toda a parte e o fim da escravidão como resultante dessas mesmas pressões externas, Hebe caracteriza os escravos como sujeitos históricos de sua liberdade, o Império como força autônoma e atuante em pró a abolição e o fim da escravidão como resultante da ação das diversas forças e contradições internas intrínsecas ao escravismo. É a lógica da contradição interna versus a lógica da coação externa.
Graham vê a extinção do tráfico de escravos e a abolição da escravatura como duas etapas dentro de um mesmo processo histórico, resultantes, ambas, de elementos externos ao escravismo no Brasil.
Hebe vê de maneira contrária. Entende que o processo que levou ao fim da escravidão foi longo e contínuo, reservando aos elementos internos do próprio escravismo o papel principal de agentes transformadores.
Por fim, Jaime Rodrigues, pelo que percebemos, situa-se numa posição intermediária, dando importância tanto aos elementos externos quanto aos internos.


2006

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