quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

ARQUEOLOGIA DE CONTEXTO: CONCEITOS APLICADOS EM PRÁTICA DE CAMPO

A Arqueóloga Profa. Dra. Márcia Angelina Alves


Eduardo Melander Filho


INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende resumir os aspectos mais importantes discutidos durante o curso de pós-graduação intitulado “Tradição e Contexto Arqueológico no Brasil”, ministrado pela Profa. Dra. Márcia Angelina Alves durante o segundo semestre de 2008, nas dependências do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.
O curso, que discorreu sobre as duas grandes escolas arqueológicas do Brasil, revelou maneiras distintas de se compreender o trabalho em arqueologia. Por um lado, uma arqueologia inspirada na “Escola Sociológica Francesa”, centrada no homem, na sociedade e na tentativa de se compreender historicamente as populações do passado e o modo como elas viviam. Por outro, uma arqueologia mais preocupada em entender modelos de funcionamento a partir de assentamentos regionais, aplicando padrões matemáticos e inspirada, em grande parte, no neo-positivismo. O antagonismo entre essas duas correntes é de tal monta que não nos permite deixar de tomar um posicionamento: metodológico e ideológico.
Assim, optando por uma arqueologia que vê no homem o agente de sua transformação, escolhemos a Dissertação de Mestrado de Arkley Bandeira, que recebeu orientação da Profa. Dra. Márcia Angelina Alves, cujo título é “Ocupações Pré-Históricas no Litoral Maranhense: um estudo arqueológico sobre o sambaqui do Bacanga na Ilha de São Luis-Maranhão”, como experiência concreta em que foram aplicados tais princípios da arqueologia de contexto. Com idêntico argumento, num sentido complementar, abordamos também a Tese de Doutorado de Lina Maria Kneip. No final, a título de comparação, abordamos nosso trabalho desenvolvido nos laboratórios do MAE-USP, acerca de remontagens de líticos para construção de cadeia operatória e entendimento de movimentos pós-deposicionais.
Entendemos que não se trata aqui de fazer uma resenha dos textos completos, mas sim ressaltar alguns aspectos que são relevantes. Assim, não entraremos em algumas questões, como por exemplo: a indústria cerâmica.
Priorizamos na dissertação de Arkley o suporte teórico de seu trabalho. Lá encontramos referências ao Método de Superfície Ampla da Escola Francesa, cujos mais nobres representantes são destacados em seu escrito (Mauss, Leroi-Gourhan, Lemonier). Trabalho baseado no conceito de Totalidade Social se referencia também em Levi-Strauss, na sua crítica à fragmentação das ciências do homem. Importante adoção do conceito de Cadeia Operatória de Lemonier, assunto que particularmente nos interessa.
No trabalho de Kneip é destacado o pioneirismo do estudo em sambaquis e populações pré-históricas litorâneas, assim como a adoção da definição de decapagem de Leroi-Gourhan, que reforça a importante questão do contexto na arqueologia, muito embora a autora revele um vínculo estreito com o evolucionismo e com o adaptacionismo.
Acrescentamos o nosso trabalho em complemento, já que em princípio houve orientação de que os alunos do curso de pós-graduação trabalhassem em alguma pesquisa de sua própria lavra. Apresento a minha em complementação, a fim de registrar o conflito do trabalho num sitio escavado sob duas matrizes metodológicas distintas.

O SAMBAQUI DO BACANGA

A dissertação de Mestrado de Arkley Bandeira discorre sobre a ocupação pré-histórica da Ilha de São Luis-Maranhão, tendo como ponto de partida os estudos sobre o sambaqui do Bacanga, que foi ocupado em 6.600 anos AP por pescadores-coletores-caçadores-ceramistas.
Parte que nos interessaria seria a análise dos vestígios líticos do capítulo 6. Bandeira nos diz que o estudo da indústria lítica pode ser abordado por vários pontos de vista: da técnica (percussão, pressão); operações principais (preparação, desbastamento, lascamento) e dos produtos obtidos (indústria de lascas, de blocos, detritos diversos). O próprio autor, no entanto, revela dificuldades em aplicar esses parâmetros analíticos nos sambaquis dessa região, visto que são poucos os exemplares líticos resgatados em escavações, até porque há escassez de matéria prima, pelo menos no caso do Bacanga. De qualquer forma, Bandeira referencia-se para a análise deste material em Brezillon, Leroi-Gourhan, Tixier, Laming-Emperaire, Pallestrini e Chiara, José Luis Morais (utilização de sua ficha de classificação dos líticos) e Vilhena-Vialou.
Os pressupostos teórico-metodológicos adotados no trabalho por Bandeira, baseiam-se na Arqueologia da Paisagem e na Antropologia das Técnicas e teve como conseqüência a contribuição de uma série de outras especialidades no estudo em questão, que segundo o autor: “...se envolveram na datação de material arqueológico, na análise técnica da cerâmica, na identificação dos vestígios arqueofaunísticos, no levantamento topográfico, altimétrico e na execução de plantas e desenhos da distribuição espacial dos vestígios, bem como na caracterização geoambiental, além da própria análise dos dados arqueológicos, principalmente o material cerâmico”.
A constatação da existência no passado de populações pescadoras-coletoras-caçadoras-ceramistas, que ocuparam a Ilha de São Luis durante um longo período, a definição desta cronologia e a investigação do modo de vida dessas populações através da caracterização técnica e tipológica da cerâmica encontrada, são os pontos altos do trabalho de Bandeira.
A dissertação foi subdividida em seis capítulos. No primeiro, o autor trabalha numa gênese geral acerca dos estudos dos sambaquis e as ligações do Bacanga com os sambaquis amazônicos de cerâmica Mina. No segundo, escreve sobre os pressupostos teóricos metodológicos, referenciando-se na Arqueologia da Paisagem e relações entre técnica, tecnologia e cadeia operatória. No terceiro, sobre o contexto ambiental em que se insere o Bacanga: paisagem; mangue; fauna. No quarto capítulo, Bandeira discorre sobre a metodologia e os procedimentos de campo (escavações, estratigrafia, estruturas arqueológicas, etc.). O penúltimo capítulo é sobre a análise dos vestígios cerâmicos. O último foi reservado para a análise dos líticos, material arqueofaunístico e em ossos e outros. Para nós, interessa alguns aspectos distintos de alguns capítulos que passamos a enfocar.
Os sambaquis são definidos na Introdução como sendo grandes aglomerados de conchas, evidência da presença de grupos humanos pré-históricos, que compartilhavam um modo de vida semelhante em quase toda costa e alguns rios do Brasil. Aponta o autor, que grande parte da literatura tradicional os considera produto de populações de baixa densidade demográfica, organizadas em bandos e possuidoras de grande mobilidade. Cita Paulo Dantas De Blasis e outros autores, que apontam uma nova geração de arqueólogos que vêm os sambaquis como marcos paisagísticos de arquitetura proposital e as populações sambaquieiras como organizadas em chefias, de grande complexidade social, sedentárias e com elaborado ritual funerário. Igualmente, ressalta trabalhos da penúltima década, que concluem ser o produto da pesca a principal alimentação desses grupos.
Diferentemente dos sambaquis do centro-sul brasileiro, os localizados no litoral amazônico e do Maranhão possuem cerâmica que é das mais antigas do Brasil, sendo as da região do Salgado (Pará) datadas em 6.000 anos AP. Essa cerâmica, que é filiada à tradição Mina, contém um antiplástico que funciona como um marcador bem definido em relação às demais cerâmicas.
Propondo-se a trabalhar num plano temporal, construindo uma cronologia e em outro espacial, correlacionando com os dados disponíveis dos sambaquis do Pará, adicionando as análises dos elementos culturais obtidos em escavação sistemática, Bandeira definiu um contexto interpretativo inicial para o Bacanga.
As perguntas resultantes dessas primeiras reflexões são amplas: se haveria possibilidade de populações pré-históricas em ambientes estuarinos ou mesmo por um longo período de tempo; se vestígios zooarqueológicos e florísticos responderiam a questões alimentares e de captação de recursos dessas populações; se estruturas e disposição de artefatos poderiam informar sobre formas de assentamento e uso da cerâmica; se cerâmica estaria associada a cultivo ou preparo de determinados alimentos; se a ocupação do litoral norte brasileiro se deu do Salgado em direção ao Maranhão.
Outras perguntas referentes às tecnologias resultantes de escolhas de matérias primas e gestos técnicos na produção de cerâmica, líticos e artefatos ósseos surgiram: se a estratigrafia por camadas naturais e a cronologia poderiam responder sobre o surgimento da cerâmica; se a presença de cerâmica seria diferenciador cultural entre os sambaquis do norte e do centro-sul do Brasil; se é possível correlacionar cerâmica e coleta de moluscos; se o tempero da cerâmica do Bacanga corresponde ao tempero da cerâmica da tradição Mina; se a evidência dos pisos ocupacionais informaria sobre a dieta alimentar desses pescadores-coletores-caçadores; se a análise tecnotipológica cerâmica subsidiaria diferenciação cultural entre os diversos e sucessivos assentamentos no Bacanga; se haveria diferenciação entre matérias primas e formas utilizadas na produção de cerâmica das diversas ocupações humanas.
A partir daí, os objetivos foram definidos: no sentido da problematização acerca do povoamento pré-histórico do litoral maranhense a partir da pesquisa sobre as ocupações humanas do Bacanga e sua correlação com a cerâmica localizada nas camadas profundas; compreender o processo de formação do sítio através da análise do registro arqueológico e cronologias estratigráficas; caracterização das populações ocupantes do Bacanga pela análise tecnotipológica da cerâmica e entender as espacialidades do sambaqui pelas evidências das estruturas e disposição do registro arqueológico.
Nos termos teórico-metodológicos, Bandeira procurou interpretar os dados arqueológicos a partir de premissas advindas da Arqueologia da Paisagem e da Antropologia das Técnicas. Utilizou também do método de Superfícies Amplas da Escola Francesa, para evidenciação de estruturas, disposição espacial da cultura material e sincronias cronológicas, na concepção de que os solos arqueológicos são arquivos materiais do passado.
Alguns aspectos do capítulo 2: “Pressupostos teórico-metodológicos”, merecem ser ressaltados.
Especial atenção deu o autor à definição de paisagem, fazendo referências ao geógrafo Milton Santos, que afirma que “paisagem seria o conjunto de formas que, num dado momento, exprime as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre o homem e a natureza. O espaço são essas formas de vida que as anima”. “Dessa forma, poderia deduzir-se que os meios e as formas comporiam a paisagem, ao passo que as práticas e as técnicas seriam do domínio do espaço. A paisagem seria composta por dois elementos: os objetos naturais, que são obra da ação humana e os objetos sociais, testemunhos da intervenção humana no passado e no presente”.
São citados outros autores ainda: F. C. Boado, que propõe a substituição do conceito de Arqueologia Espacial por uma Arqueologia da Paisagem, trabalhando nas mudanças da paisagem ao invés do espaço; Marc Bloch, historiador, que percebe o caráter palimpsesto entre paisagem e espaço; Francisco Carlos Teixeira da Silva, que percebe o conceito de paisagem a partir de noções de conjunto sistêmico e por padrões possíveis de se comparar.
Definindo finalmente a Arqueologia da Paisagem, então, como um ramo da ecologia, que trata das relações humanas e as paisagens naturais ou construídas pela abordagem holística, adota o método de Análise Formal (Morfológica) de Boado, que é um método onde se analisa as formas materiais concretas que constituem as paisagens naturais (fisiográficas) e as artificiais (cultura material), numa comparação dos modelos formais de organização do espaço e da cultura material entre si.
O modelo de Boado, portanto, consiste em várias etapas de análise: morfológica, fisiográfica, de trânsito, de terrenos, topográfica, etc.
Outro subtítulo a ser destacado é o que se refere às relações entre técnica, tecnologia e cadeia operatória, onde inicialmente faz citação de B. G. Trigger, que conceitua a Arqueologia como “uma ciência social que procura explicar o que aconteceu com os grupos humanos do passado”, “tendo como principal objeto de estudo a cultura material” e de C. Geertz, segundo o qual “cultura é um contexto e é através do fluxo do comportamento – a ação social – que as formas sociais encontram articulação”. Juntamente a esses dois conceitos, recorre o autor ao conceito de Cultura Material de Ulpiano Bezerra de Menezes, que a “percebe como o seguimento do meio físico que é socialmente apropriado”, seguindo “padrões sociais”.
Para o estudo da técnica e tecnologia, adota o autor as bases teóricas contidas na tradição etnológica e sociológica francesa de Durkheim, Mauss, Leroi-Gourhan e Pierre Lemonier, numa interface entre a Sociologia e a Arqueologia, que resultou no surgimento da Antropologia das Técnicas. Apontando nessa direção, adota-se o conceito de Totalidade Social e a abordagem sistêmica de Mauss, que de acordo com a Profa. Dra. Márcia Angelina Alves “amplia o conceito de fato social de Emile Durkheim para o fato social total, pondo em foco a preocupação em definir a realidade social, ou seja, o social como realidade. Dessa forma, o social é integrado em um sistema tridimensional: sociológico (sincrônico), histórico (diacrônico) e fisiopsicológico.
Mauss, além disso, em sua obra “As técnicas corporais”, observa sobre o caráter cultural de nossos gestos, até então considerados “naturais”, sendo o precursor da Antropologia das Técnicas.
O conceito de Totalidade Social, filho do conceito de Fenômeno ou Fato Social Total consiste, segundo Levi-Strauss, no estudo integral de uma realidade social, cujos diferentes aspectos (biológicos, econômicos, etc.) não devem ser fragmentados no estudo, visto que os fatos sociais não são redutíveis a fragmentos esparsos. Levi-Strauss, dessa maneira, tece uma crítica à fragmentação dos estudos do homem.
Quanto aos aspectos ligados à técnica e tecnologia, parte-se da definição de P. Lemonier, segundo o qual “tecnologia é uma expressão material das atividades culturais de uma sociedade, o meio que permite que os grupos sociais ajam sobre a matéria, com vistas a suprir suas necessidades”. Noções semelhantes possuem M. A. Dobres e C. R. Hoffman, que concebem tecnologia como um “fenômeno cultural que traz consigo valores, símbolos e significado de atividades sociais”.
H. L. Loney comenta que “Lemonier rejeita a noção de que a tecnologia existe fora dos limites sociais e acredita que as características técnicas e os processos tecnológicos funcionam parcialmente ou inteiramente a partir do universo físico e social. Dessa forma, os procedimentos técnicos resultam da transmissão cultural, na forma de ensino-aprendizagem”.
Lemonier utiliza do conceito de Cadeia Operatória, que seria “uma série de operações que transforma uma substância, a exemplo da matéria prima, em um produto manufaturado”. Dessa forma, um Sistema Tecnológico pode ser caracterizado “pela descrição e análise das cadeias operatórias”, que “são compostas por um determinado número de etapas sequencialmente ordenadas”, etapas essas que “podem ser alcançadas pelo estudo da seqüência dos gestos técnicos e pelas escolhas técnicas feitos pelos artesãos”.
No capítulo 4 – Sambaqui do Bacanga: a pesquisa arqueológica e cronológica – Bandeira evidencia a importância de todos os vestígios arqueológicos encontrados num sítio, enquanto fornecedores de informações sobre os aspectos culturais e sociais de populações desaparecidas, retomando Levi-Strauss em sua observação sobre a importância da integração das diversas disciplinas para a compreensão das realidades sociais, numa crítica à fragmentação dos estudos do homem.
Por outro lado, tratando-se de um sambaqui com sucessivas ocupações e um volume imenso de material arqueológico e de grande diversidade, optou-se pelo registro sistemático dos testemunhos evidenciados e pela observação do contexto, utilizando o Método Sistemático e Criterioso de Coleta de Documentação Arqueológica com Controle Estratigráfico, conforme recomendações da Profa. Dra. Márcia Angelina Alves e observação de F. Laplatine: “...no campo tudo deve ser observado e anotado, mesmo que não diga respeito diretamente ao assunto que se pretende pesquisar”.
O método de escavação empregado no Bacanga foi o de Superfícies Amplas em Decapagens por Níveis Naturais de Leroi-Gourhan, adaptado ao solo tropical do Brasil por L. Pallestrini, eficiente na “evidenciação de restos de habitações, fogueiras, áreas de pisoteamento, lascamentos e fabricação de cerâmica” segundo a própria Pallestrini e José L. Moraes.
Num resumo, Bandeira afirma que “esse método objetiva a detecção da totalidade social de Mauss e centra-se na análise das relações entre os vestígios, em uma perspectiva de detectar os elementos intra-sítio, pautada na estratigrafia por camadas naturais e no estabelecimento de cronologias absolutas”.
Importante ressaltar que nesse capítulo Bandeira descreve os procedimentos de campo, as campanhas, as atividades, a metodologia do levantamento prévio, as etapas, a área de escavação, as atividades de escavação e pós-escavação e o destino dos segmentos. Não entraremos em maiores detalhes a esse respeito.

SAMBAQUI DO FORTE

Outro trabalho em que procuramos algumas referências teóricas foi a tese de Doutorado de Lina Maria Kneip, orientada por Luciana Pallestrini e apresentada ao Depto. De Ciências Sociais da FFLCH-USP em 1977.
Trata-se de um estudo da adaptação de populações pescadoras-coletoras pré-históricas ao modo de vida litorâneo, sendo o objeto de estudo o Sambaqui do Forte em Cabo Frio-RJ.
O trabalho abarca o estudo de produtos manufaturados e obtenção de alimentos, analisando o meio circulante ao sambaqui e a adaptação humana a esse meio.
Essas adaptações são refletidas, segundo a autora, nos testemunhos arqueológicos, que são evidências de vários modos de vida voltadas para a coleta com pouco ou alguma diversificação, dependendo a camada estratigráfica.
O projeto “Estudo do Sambaqui do Forte”, iniciou-se como escavação de salvamento em 1971, sendo que várias outras campanhas posteriores foram realizadas. Todas fazem parte do trabalho de Kneip.
A autora privilegia a economia do Sambaqui do Forte como sendo de pesca e coleta (peixes e moluscos), acrescentando que caça e coleta de frutos, raízes e sementes eram atividades complementares, mas não as principais.
Foram detetadas mudanças tecnológicas (na confecção de instrumentos) e econômicas (disponibilidade dos recursos alimentares) nas várias camadas verticais (estratigráficas) do Sambaqui do Forte.
A tese está subdividida em quatro capítulos, mais Introdução e Conclusão.
Kneip encerra sua Introdução considerando o trabalho como pioneiro por ser o primeiro “no qual se focaliza uma visão de conjunto que engloba toda uma série de ocupações humanas de pescadores e coletores litorâneos”.
Importante destacar que o Sambaqui do Forte está assentado em uma área de restinga, ao contrário do Bacanga que está numa área próxima ao manguezal. De igual importância é a gênese dos dados arqueológicos que a autora confere no capítulo I, relatando sistematicamente os estudiosos da região.
Passaremos agora aos aspectos que nos interessam no trabalho de Lina Kneip.
No capítulo III, a autora relata a adoção do Método de Escavação em Superfícies Amplas, com a Técnica de Decapagem Horizontal por Níveis Naturais, entendendo decapagem conforme o definido por Leroi-Gourhan, que procura ressaltar a posição dos vestígios arqueológicos dentro de um contexto geral. Chama atenção a autora de que decapagem significa: “decapar o solo significativo”.
Alguns propósitos orientaram as áreas a serem decapadas, como a “necessidade de observar a distribuição diferencial dos vestígios a fim de obter informações sobre a organização espacial” e a “necessidade de observar minuciosamente a forma das camadas, as fogueiras, os sepultamentos, a fim de reconstituir a trama dos vestígios atuais, espelho de uma organização humana pré-existente”. O que a autora sugere é que não há hipótese inicial determinante na condução das escavações. Cita Pallestrini, quando observa que “os critérios que orientam as decapagens variam e, principalmente, não podem ser pré-estabelecidos; geralmente são determinados em campo”.
Quanto à classificação do material lítico, de nosso interesse, Kneip faz citações também a vários autores, dentre os quais: Tixier; Vilhena de Moraes e, em destaque, Laming-Emperaire. Núcleo, fragmento, seixo utilizado, resíduo de lascamento (estilhas), lascas utilizadas, peça com depressão (quebra coquinho), percurtor, polidor, furador, ponta, raspador, faca (?), lâmina de machado lascada e polida, almofariz, placa perfurada (adorno), são algumas das tipologias adotadas na classificação de artefatos líticos.
Lina Kneip conclui sua tese sobre a adaptação dos pescadores e coletores do Sambaqui do Forte, sugerindo que seu trabalho “poderá servir de modelo para novas linhas de pesquisa”. Suas conclusões resumidas são que dois grupos culturais ocuparam o Sambaqui do Forte pela seqüência vertical: um essencialmente coletor (o mais antigo) e outro também coletor, mas apresentando atividades mais intensas de caça e pesca. Mudanças tecnológicas observadas no grupo mais recente indicam que ele mudou de tecnologia, adaptando-se às condições locais de subsistência.
No capítulo I estão incluídos síntese dos aspectos ecológicos e arqueológicos . No aspecto ecologia está incluída uma descrição do ambiente do ponto de vista geomorfológico, clima, flora, fauna. O capítulo II, que a autora considera uma das partes principais do trabalho (juntamente com o capítulo III), inclui a caracterização físico-química e composição faunística das diversas camadas. O capítulo III vem a confirmar os dados da análise faunística do capítulo anterior. Há o estudo do material lítico, cuja analise através da distribuição percentual no sítio, permitiu localizar uma evolução da camada mais profunda (pouco uso do lascamento) até a camada superior (polimento). O capítulo IV contém a descrição de vários tipos de sepultamentos com informações referentes ao mobiliário funerário e situação e disposição dos esqueletos. Dados da antropologia física foram registrados e estudados.

ABRIGOS VERMELHOS

O sítio conhecido como Abrigos Vermelhos, são na verdade três abrigos sob rochas de arenito, cujos tetos se encontram numa porção central. Pinturas parietais em grande quantidade foram encontradas, repetindo as características de outros sítios encontrados na região do município de Rondonópolis-MT, como o de Ferraz Egreja.
Descoberto por Eduardo Vilhena em 1990, começou a ser escavado por Agueda Vilhena-Vilaou em 1991. Paulo Dantas de Blasis coordenou as escavações posteriores de 1993,1995, 1996 e 1999, auxiliado por Walter Morales e estudantes ligados às missões arqueológicas franco brasileiras. Tivemos, portanto duas orientações na condução dos trabalhos, inicialmente com a Escola Francesa (Vialou) e, posteriormente, Processualista.
As intervenções foram feitas através de sondagens, trincheiras e áreas de decapagem, revelando um sedimento arenoso até a base do sítio, onde se encontra uma laje de arenito de topografia irregular, fazendo com que a profundidade das sondagens atingisse de 30 cm a 270 cm, variando de acordo com a irregularidade da laje.
As datações variam de mais ou menos 2000 anos AP a 1200 anos AP, indicando a presença de indícios de duas ocupações humanas.
As escavações demonstram que o sítio foi utilizado como “oficina” para produção de artefatos líticos. Material cerâmico foi também encontrado em pequena quantidade nas camadas superiores, assim como corantes foram encontrados em quantidade razoável.
A maioria do material lítico (72,5%) é de matéria prima abundante na região, o arenito silificado. Cerca de 18,5% do material lítico recolhido é de sílex e não tem origem natural do sítio, foram trazidos de outras regiões. Há ainda quartzos e quartzitos e outras rochas em menor quantidade.
O material recolhido durante as diversas escavações encontra-se no MAE. São 6.000 peças que foram analisadas em laboratório. Importante informar que, por uma questão de metodologia de campo, os documentos arqueológicos não foram lavados. Da mesma forma, o tombamento do referido material foi efetuado em campo, indiscriminadamente, não importando suas dimensões.
A tipologia lítica adotada na análise foi a de Paulo Dantas de Blasis, que consiste em estudar as variáveis: queima (ausente, presente); bordos utilizados (número); córtex (ausente, presente); natureza do córtex (bloco, calhau, seixo, veio); matéria prima (sílex, quartzo, arenito, etc.); classe (artefato, lasca, núcleo, percurtor, fragmento simples e bifacial, etc.); suporte ou tipo de lasca (simples, com dorso, ultrapassante, transbordante, etc.); ângulo do talão (em graus); preparo da plataforma (ausente e presente) e talão espesso (ausente, presente).
Foi percebido através da análise das indústrias líticas que é uma indústria sobre lascas, pois os Abrigos Vermelhos apresentam tanto restos de produção lítica, quanto o próprio suporte onde foram “fabricados os artefatos”. Segundo Danilo Chagas Assunção, que foi o bolsista que efetuou grande parte dessa análise: “as lascas representam 72% da amostra analisada, seu tamanho médio muito pequeno e a existência de muitas microlascas, nos indicam que o abrigo estava sendo utilizado como oficina para a fabricação e retoque de instrumentos líticos utilizados no cotidiano das populações que ali passaram”. Foram poucos artefatos encontrados e mesmo as lascas apresentam poucas marcas de utilização.
Duas constatações surgiram partindo de observações no local de escavação e em laboratório, a respeito do contexto pós deposicional. A primeira é que houve continuidade cultural durante os quase mil anos de utilização do local, período, portanto, longo. A segunda é que os líticos maiores estavam concentrados em grande quantidade nos níveis mais profundos, enquanto que os fragmentos menores concentrados mais à superfície. A partir dessas observações surgiu a hipótese de que pode ter ocorrido algum tipo de movimentação pós-deposicional, o que explicaria essas concentrações e continuidade cultural.
Astolfo Gomes de Mello Araújo estuda há anos a ocorrência dessas movimentações em sítios no Brasil, já tendo publicado alguns artigos sobre o assunto. Ele explica que pode haver movimentação, tanto no sentido vertical, quanto no horizontal, ou ambos. Essas movimentações ocorrem por causas artificiais (pisoteamento pela população, remoção de detritos e artefatos) e também causas naturais (ex: minhocas). Fatores biológicos, como: fitoturbação (crescimento de raízes); zooturbação (formigas. cupins, minhocas); pisoteamento de animais de grande porte; roedores; tatus e fatores mecânicos, tais como: compactação (acomodação das partículas constitutivas do solo) e coluvionamento. Nos Abrigos Vermelhos foi observada a presença de térmitas nas “paredes”. Ocorrência de tatus são comuns em abrigos da região.
Iniciamos então, uma nova etapa de análise do material lítico dos Abrigos Vermelhos em laboratório sob nossa condução com o objetivo de fazer remontagens, a fim de num prazo mais curto responder à questão dos movimentos pós-deposicionais. Os resultados dessas análises permitirão que, num prazo mais longo, se objetivem estudos sobre a cadeia operatória, permissíveis inclusive sob as premissas de Lemonier.
A etapa laboratorial consiste em separar as peças por matéria prima e em seguida por textura do material, forma de lascamento e, principalmente, pela ocorrência dos vestígios intrusivos, assim como outras variantes. Esse trabalho já está quase terminado. Já temos praticamente as remontagens de segundo grau (peças que com certeza constituíram uma única matriz original) e de terceiro grau (cuja origem advém de um mesmo bloco). Começaremos agora a tentativa de remontagens diretas (de primeiro grau).
No final do trabalho, teremos praticamente todas as 6.000 peças separadas em conjuntos (de primeiro, segundo e terceiro graus). Após lançamento em banco de dados, poderemos fazer projeções parciais, totais, na maior variabilidade possível, a fim de estabelecer um padrão dessas movimentações pós-deposicionais, se é que elas realmente ocorreram.

CONCLUSÃO

Nas páginas anteriores procuramos ressaltar as variantes teórico-metodológicas da arqueologia baseada no estudo do contexto, filiada ao conceito de Totalidade Social da Escola Francesa, tendo como referência exemplos concretos de aplicação prática dos referidos preceitos.
Apresentamos também em nosso trabalho, a possibilidade de se trabalhar de acordo com esses conceitos, mesmo com material coletado a partir de escavações orientadas por outra metodologia.
Não obstante, grande parte dos arqueólogos brasileiros são filiados à Escola Processualista, que hoje redobra sua força tendo em vista o crescimento de obras públicas e particulares e a conseqüente demanda por serviços relacionados à arqueologia de contrato, que por utilização de alguns critérios distintos, tornam viável uma escavação num espaço de tempo relativamente curto.
Contudo, devemos relembrar do passado recente em nosso país e do papel que os iniciadores da arqueologia processualista tiveram politicamente durante o regime que vigorou antes que se reimplantasse a democracia.
Importante também lembrar o papel que essa “nova arqueologia” joga no mundo, em especial Israel. Registramos os ensinamentos de Trigger: “...la ‘nueva arqueologia’ se puede ver como la expresión del imperialismo americano de postguerra”. “la ‘nueva arqueologia’ defiende la no importância de las tradiciones nacionales por sí mismas y de nada que sea um obstáculo de la actividad econômica norteamericana”.
Daí a importância de uma arqueologia que seja uma alternativa a esses preceitos. Uma alternativa baseada no fato de que o homem constrói seu próprio destino, transformando a natureza e a sociedade que ele mesmo construiu.

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DEZ/2009

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